Realidade, Ficção e Meios-Termos (Modernidade Ultrapassada - 3ª parte)
Costumo dizer que há vantagens em tomar ônibus, demorar mais tempo pra chegar nos lugares – desde que você esteja confortavelmente sentado e em horários pouco movimentados, digamos. Você tem tempo de pensar, contemplar um pouco as coisas externas e internas. E, ultimamente, tem sido o lugar em que tenho tido mais tempo de ler. Pois é, tenho tentado achar os horários mais suaves, sentado mais ou menos no meio do veículo para não enjoar com os solavancos, e me dedicado às leituras necessárias de cada dia. Numa dessas, comecei a ler um artigo de Umberto Eco (sempre ele!) sobre a função da literatura. De onde eu moro até a Universidade Federal é um bom tempo, principalmente próximo à hora do rush, então pude lê-lo e pensar muito, além de fazer algumas anotações.
Curiosamente, os pontos levantados pelo filólogo-semiótico-esteta-escritor italiano tocam um pouco o texto anterior do blog. Isto porque, a um certo ponto, Eco estabelece que uma das funções do texto literário é estabelecer pequenas verdades, encerradas em universos próprios, pré-formatados e acessíveis ao conhecimento público. Mais adiante, contrapondo isso à acessibilidade e interatividade quase absoluta proporcionada pelo ambiente pós-moderno da comunicação virtual – pelo mundo virtual em si, enfim – ele toca em como é possível subverter esses contextos, através de uma composição hipertextual, misturas de uma obra com outra, intervenção numa certa história, e por aí vai. No entanto, ele sempre ressalta que, no fim das contas, a literatura, a obra pura e já imortalizada, termina nos lembrando daquelas verdades literárias, e de certa forma, nos educando que as coisas têm um fim, independente das nossas vontades.
Bem, viagens existencialistas à parte (ando batendo muito nesta tecla ultimamente, desculpa aí, mea culpa), foquei minha leitura mais nessa parte do conceito de realidade e ficção, uma pequena problemática que tenho tido particular atenção depois do contato com alguns filmes recentes, classificados ou apresentados dentro do gênero “documentário”; além de outros filmes de ficção que, além de serem “baseados em fatos reais” (ou, simplesmente, “baseados em fatos”, que me soaria menos redundante), usam imagens de arquivo plenamente integradas à sua narrativa.
Este último caso, aliás, é já bem comum na história do cinema. Mais recentemente, vimos filmes como “Boa Noite Boa Sorte” (Good Night and Good Luck”, 2005), de George Clooney, contrapondo documentos históricos da TV americana com cenas produzidas para o filme. Num exemplo mais pop, “Forrest Gump” (1994), de Robert Zemeckis, ia mais longe e chegava a subverter o próprio contexto dessas imagens originais, fazendo a “ficção interferir na realidade”, digamos assim. Mas isso é algo que já vínhamos tendo contato há algum tempo em programas humorísticos de TV, ou filmes anteriores, enfim.
O que eu acho mais interessante para a discussão é justamente o primeiro caso. A reflexão me veio pouco depois de assistir ao cubano “Suite Habana” (2003), de Fernando Pérez, que retrata um entardecer em Havana sob os pontos-de-vista de vários personagens, aparentemente “reais”, porém evidentemente atuando para a câmera. Não muito tempo depois, tive a oportunidade de ver, seguido de um debate com o próprio diretor Eduardo Coutinho, “O fim e o princípio” (2006). Ambos são “documentários” que estão mais interessados em registrar a performance de não-atores diante das câmeras, dentro do contexto de suas rotinas, mais do que a mera cobertura de um fato dentro de uma certa perspectiva jornalística.
Coutinho afirma, inclusive, que estava, desde o início do processo de filmagem, disposto a se submeter ao que a realidade tinha a lhe dizer, através daqueles não-atores falando de suas vidas diante da câmera. Dentro desta perspectiva, o mais interessante no filme não é o cotidiano de uma comunidade de parentes idosos no interior da Paraíba, mas a originalidade e a teatralidade daqueles personagens. Creio que não se trata de um documentário concebido nos moldes jornalísticos de busca pela verdade, mas por outro lado certamente não se trata de ficção pura. Arrisco, mesmo sem ter estudado o assunto a fundo, dizer que se trata de uma “realidade expressiva” - a realidade interferindo na ficção.
Engraçado que, neste último fim-de-semana, participei de um encontro de estudantes de relações internacionais. À parte que conheci pessoas maravilhosas e me diverti muito com as constantes festas, foi legal ter tido um primeiro contato com um campo acadêmico bastante vasto e interessante. Para a nossa discussão aqui, foi particularmente rico ter presenciado um debate entre um roteirista e um historiador acerca de um filme chamado “O pesadelo de Darwin” (“Darwin’s Nightmare”, 2004), de Hubert Sauper. Um crítico amigo meu o havia definido como um “documentário de terror”, com imagens e personagens bizarros que não deixam a desejar a alguns planos de George Romero. A discussão terminou girando em torno da veracidade de algumas informações contidas no filme, apuradas como generalizadas ou exageradas por repórteres do Le Monde. Porém houve um consenso final em reconhecer o filme como fortemente expressivo ao levantar questões que, independente da total fidedignidade imparcial dos fatos (algo que certamente não existe, já que tudo passa por filtros subjetivos de quem conta a história), são pertinentes ao cenário geopolítico.
Tomando aquele conceito de Umberto Eco levantado no início, o documentário poderia ser definido, em termos literários, como o encerramento de uma daquelas verdades expressivas. O que o distanciaria da ficção enquanto gênero? Bem, poderíamos dizer que não muita coisa, poderíamos jogar no processo da construção do discurso, ou poderíamos, simplesmente, relevar a questão de gênero, aceitando que a convergência de linguagens diversas neste ambiente pós-moderno é definitiva, e que é assim que cada vez mais lemos a realidade.
Curiosamente, os pontos levantados pelo filólogo-semiótico-esteta-escritor italiano tocam um pouco o texto anterior do blog. Isto porque, a um certo ponto, Eco estabelece que uma das funções do texto literário é estabelecer pequenas verdades, encerradas em universos próprios, pré-formatados e acessíveis ao conhecimento público. Mais adiante, contrapondo isso à acessibilidade e interatividade quase absoluta proporcionada pelo ambiente pós-moderno da comunicação virtual – pelo mundo virtual em si, enfim – ele toca em como é possível subverter esses contextos, através de uma composição hipertextual, misturas de uma obra com outra, intervenção numa certa história, e por aí vai. No entanto, ele sempre ressalta que, no fim das contas, a literatura, a obra pura e já imortalizada, termina nos lembrando daquelas verdades literárias, e de certa forma, nos educando que as coisas têm um fim, independente das nossas vontades.
Bem, viagens existencialistas à parte (ando batendo muito nesta tecla ultimamente, desculpa aí, mea culpa), foquei minha leitura mais nessa parte do conceito de realidade e ficção, uma pequena problemática que tenho tido particular atenção depois do contato com alguns filmes recentes, classificados ou apresentados dentro do gênero “documentário”; além de outros filmes de ficção que, além de serem “baseados em fatos reais” (ou, simplesmente, “baseados em fatos”, que me soaria menos redundante), usam imagens de arquivo plenamente integradas à sua narrativa.
Este último caso, aliás, é já bem comum na história do cinema. Mais recentemente, vimos filmes como “Boa Noite Boa Sorte” (Good Night and Good Luck”, 2005), de George Clooney, contrapondo documentos históricos da TV americana com cenas produzidas para o filme. Num exemplo mais pop, “Forrest Gump” (1994), de Robert Zemeckis, ia mais longe e chegava a subverter o próprio contexto dessas imagens originais, fazendo a “ficção interferir na realidade”, digamos assim. Mas isso é algo que já vínhamos tendo contato há algum tempo em programas humorísticos de TV, ou filmes anteriores, enfim.
O que eu acho mais interessante para a discussão é justamente o primeiro caso. A reflexão me veio pouco depois de assistir ao cubano “Suite Habana” (2003), de Fernando Pérez, que retrata um entardecer em Havana sob os pontos-de-vista de vários personagens, aparentemente “reais”, porém evidentemente atuando para a câmera. Não muito tempo depois, tive a oportunidade de ver, seguido de um debate com o próprio diretor Eduardo Coutinho, “O fim e o princípio” (2006). Ambos são “documentários” que estão mais interessados em registrar a performance de não-atores diante das câmeras, dentro do contexto de suas rotinas, mais do que a mera cobertura de um fato dentro de uma certa perspectiva jornalística.
Coutinho afirma, inclusive, que estava, desde o início do processo de filmagem, disposto a se submeter ao que a realidade tinha a lhe dizer, através daqueles não-atores falando de suas vidas diante da câmera. Dentro desta perspectiva, o mais interessante no filme não é o cotidiano de uma comunidade de parentes idosos no interior da Paraíba, mas a originalidade e a teatralidade daqueles personagens. Creio que não se trata de um documentário concebido nos moldes jornalísticos de busca pela verdade, mas por outro lado certamente não se trata de ficção pura. Arrisco, mesmo sem ter estudado o assunto a fundo, dizer que se trata de uma “realidade expressiva” - a realidade interferindo na ficção.
Engraçado que, neste último fim-de-semana, participei de um encontro de estudantes de relações internacionais. À parte que conheci pessoas maravilhosas e me diverti muito com as constantes festas, foi legal ter tido um primeiro contato com um campo acadêmico bastante vasto e interessante. Para a nossa discussão aqui, foi particularmente rico ter presenciado um debate entre um roteirista e um historiador acerca de um filme chamado “O pesadelo de Darwin” (“Darwin’s Nightmare”, 2004), de Hubert Sauper. Um crítico amigo meu o havia definido como um “documentário de terror”, com imagens e personagens bizarros que não deixam a desejar a alguns planos de George Romero. A discussão terminou girando em torno da veracidade de algumas informações contidas no filme, apuradas como generalizadas ou exageradas por repórteres do Le Monde. Porém houve um consenso final em reconhecer o filme como fortemente expressivo ao levantar questões que, independente da total fidedignidade imparcial dos fatos (algo que certamente não existe, já que tudo passa por filtros subjetivos de quem conta a história), são pertinentes ao cenário geopolítico.
Tomando aquele conceito de Umberto Eco levantado no início, o documentário poderia ser definido, em termos literários, como o encerramento de uma daquelas verdades expressivas. O que o distanciaria da ficção enquanto gênero? Bem, poderíamos dizer que não muita coisa, poderíamos jogar no processo da construção do discurso, ou poderíamos, simplesmente, relevar a questão de gênero, aceitando que a convergência de linguagens diversas neste ambiente pós-moderno é definitiva, e que é assim que cada vez mais lemos a realidade.
7 Comments:
óooootimo texto, leo! instrutivo e desafiador como a literatura deve ser.
li os outros agora também, já que antes tinha limitado acesso à rede. me encheu de pensamentos. adorei todos. você é um escritor de talento.
parabéns!
: )
esse trecho casa-ufpe era uma viagem, no sentido literal e no outro também, eu ia olhando pela janela e viajava naquele caminho - no mínimo - bizarro.
Quando ele fala de misturas de um obra com outra me lembra de análise do discurso, a questão da intertextualidade, de que tudo o que existe antes da produção de um texto o influencia.
No que toca a produção de um documentário (ao que me parece) se aproxima um pouco de um texto acadêmico. Em ambos os formatos o produtor (autor, escritor, pesquisador, o que seja) procura uma configuração formal (que lhe confere uma maior credibilidade) para divulgar suas próprias idéias.
Pode parecer um golpe sujo. Pode até ser um golpe sujo. Mas nem sempre é um golpe sujo consciente.
Para um aprofundamento da questão realidade - ficção
Recomendo o filme:
"What the bleep do we know!?"
Não é querendo morgar não, mas dizem que ler no ônibus causa descolamento de retina...
'Tirei' o curso de Direito todim lendo no ônibus e inda tenho uma retina boa!
Muito massa o blogg! Tem tamburete aí?
You have an outstanding good and well structured site. I enjoyed browsing through it » »
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