31 janeiro 2006

O irmão do meio

Aristóteles já postulava há alguns milhares de anos que o número três era retoricamente perfeito. Esta lógica pode ser percebida de forma até simplória em argumentações corriqueiras (ponto, contraponto, conclusão), dialéticas (tese, antítese e síntese) e na própria narrativa (começo, meio e fim). As peças de teatro a partir do Renascimento começaram a se organizar em três atos. No mais, o roteirista e professor Jean-Claude Carrière cita a tradição oriental do “Ho-kai-jun” como uma constante em cada cena de um roteiro, abrangendo para a estrutura completa da história: início, desenvolvimento e brilho. Em narrativa, ou qualquer tipo de argumentação retórica, três nunca é demais.

Fácil entender portanto porque algumas histórias são concebidas como trilogias. Quando uma narrativa se desdobra além de uma peça única, a tendência é que ela ocorra em três partes. Analisando cada episódio em separado, no entanto, normalmente chegamos à conclusão de que há diferenças, notadamente de ordem qualitativa, no que diz respeito a um deles. E, na grande maioria dos casos, essa queda se aplica ao segundo episódio. Isso, o do meio.

Este pensamento sobre a natureza do segundo episódio me veio depois de ter visto “Manderlay”, segunda parte da trilogia “U, S & A”, de Lars Von Trier, iniciada pelo impressionante “Dogville”. E então, lembrei-me imediatamente de outras trilogias mais ou menos recentes, como “Matrix”, de Larry e Andy Wachowski, e “O Senhor dos Anéis”, de Peter Jackson, e, considerando mais a parte moderna da série, “Guerra nas Estrelas”, o eterno brinquedo do George Lucas. Vamos por partes. Ou melhor, por três partes.

Já escrevi sobre “Dogville” neste espaço (ver “A regra da exceção”, caso interesse). Ali, há tanto uma subversão radical não apenas no que diz respeito ao visual evidente (a história transcorrendo sem cenários) como também no mecanismo da linguagem cinematográfica em si, como abordei no meu texto anterior. Mas o que muita gente deixa de evidenciar é a história extremamente forte que está sendo contada daquela forma. Uma crítica a um sistema hegemônico que se expressa através do próprio conteúdo narrativo e se expande para a própria imagem, com ausência de cenários objetivos, apelando para a subjetividade estranha a uma forma de fazer cinema tão hegemônica quanto.

Em “Manderlay”, a impressão geral ao sair da sala foi que as pessoas pensavam ter estado diante de uma obra inferior. Será que Nicole Kidman fez tanta falta assim? Ou foi outra coisa? Bem, à parte que Nicole Kidman faz falta de fato, arriscaria dizer que esta não seria a causa principal. Isto porque, mantendo a estética iniciada na parte anterior, “Manderlay” não traz nenhuma novidade na forma e, por mais que a história esteja bem amarrada e seja bastante intensa e expressiva, o conceito narrativo ainda está em desenvolvimento, e será completo apenas quando a terceira parte, “Wasington”, for lançada.

“Matrix Reloaded” sofre mais ou menos da mesma síndrome: seqüência de um filme que conseguiu deixar boquiabertos espectadores já habituados a efeitos visuais extremamente impressionantes, traz pouca inovação visual e a história parece um pouco vazia à maioria, pelo que pude perceber em algumas conversas. Lembro que na época eu viajei em comparar “Matrix Reloaded” a um solo do saxofonista John Coltrane, em que a proliferação extrema de notas formava um outro tipo de apreciação musical, que pouco perto passava de um sentido melódico mais objetivo. A viagem era na alta ‘densidade demográfica’ dos sons. Da mesma forma, o filme me parece ser um experimento extremo de seqüências de ação e efeitos visuais, apenas com o intuito de dar ritmo à série do que fechar uma história autônoma. Este raciocínio, de fato, me pareceu correto quando “Matrix Revolutions” foi lançado no ano seguinte. Atenção para a cena do arquiteto na segunda parte, colada na cena final da terceira.

Quando vi “Guerra nas Estrelas: Episódio 2 – O Ataque dos Clones”, tive praticamente certeza de que tinha acabado de ver o pior filme da série. Lento no pior sentido, atuações fracas em cenas pífias e tudo mais que pode advir daí. No entanto, depois de ter visto o “Episódio 3 – A Vingança dos Sith”, reconsiderei um pouco, e vi que naquele momento da narrativa (concebida enquanto trilogia) talvez fosse mesmo preciso dispor de momentos menos ‘intensos’, digamos assim – o famoso ponto de respiro da história.

Já na trilogia de “Senhor dos Anéis”, achei que tudo tinha sido uma exceção à regra. A segunda parte, “As Duas Torres”, era, na minha opinião, a melhor das três. Isto porque o primeiro se resumia a apresentar um universo muito complexo, semeando os elementos para várias linhas narrativas e dramas individuais dos numerosos personagens envolvidos; e o terceiro, bem, o terceiro tem problemas narrativos mais sérios, como os vários finais segmentados, ao invés de tentar convergir todas as linhas narrativas para um único (este problema de montagem está comentado em “Ferraris, replicantes e frankensteins”). A história se desenrolava expressiva mesmo na segunda parte, o que é natural se pensarmos na complexidade do universo dramático da série. Não é fácil adaptar mitologias tão conhecidas.

Nas famílias de três filhos, há uma recorrência de casos em que o irmão do meio é o mais perdido. Isto porque ele não é nem a forte representação do orgulho da casa (no caso do mais velho) e nem a frágil criatura a ser protegida (no caso do caçula). Ele termina se colocando num limbo, num conjunto de incertezas e frustrações, carente da atenção devida. Bom, não sei até que ponto isto seria uma regra, mas faz sentido ao pensarmos em sentido narrativo e retórico: primeiro se apresenta o contexto, depois tenta-se desenvolver um conceito para só depois concluir-se com um pouco mais de segurança o que se quer dizer. A parte transitória, o meio do caminho, se isolado, encontra-se meio perdido mesmo.

O que me faz pensar que talvez eu tivesse ter usado apenas três exemplos, ao invés de quatro. Pode ser, portanto, que eu tenha deixado alguma coisa em aberto neste meu raciocínio. Então façamos assim: escolham um dos quatro que vocês achem menos pertinente e elimine toda a sua referência do texto. Talvez a coisa toda faça mais sentido.

9 Comments:

Blogger Unknown said...

ou, some mais umas centas trilogias e desconstrua a idéia de que 'o irmão do meio' é um perdido. eu voto em o senhor dos anéis, o poderoso chefão, alien (jogando ao vento o quarto filme, que não conta at all), indiana jones, a trilogia inicial de star wars e agora deu preguiça de pensar mais.

9:42 AM  
Blogger Leo Falcão said...

Bem, temos que chegar pelo menos num múltiplo de 3, não? Mas sou mais a favor das pessoas expressarem suas opiniões a respeitos das várias segundas partes das diversas trilogias -- nada necessariamente embasado, e tal, só opiniões mesmo...

O que acha? :o)

11:01 AM  
Blogger d meira said...

ei! eu sou a irmã do meio. humpf!

12:25 PM  
Blogger simone jubert said...

que texto fuderoso!

12:27 PM  
Blogger ... said...

Outro problema das triologias é a necessidade de se ganhar dinheiro pegando carona no sucesso do primeiro filme. É quando concordo com o comentario do "poster" :

"qto a matrix, existe o primeiro filme. as duas partes seguintes não sao partes de uma trilogia, mas uma prova de que, tendo dinheiro pra se gastar, vc pode muito bem entrar numa ego-lombra megalomaniaca e convencer qualquer um bem disposto a acreditar em suas ideias por mais vazias que elas sejam. o reloaded começa muito bem e todo mundo pensa "ui, vai ser melhor que o primeiro", mas tudo se transforma em cópia de seriado muito rico e bem produzido da sony ou warner channel."

Concordo com vc sobre astriologias citadas... so falta assistir Manderlay.

Post massa.

8:38 PM  
Blogger Metheoro said...

Trilogias são e foram feitas, para tudo isso que você bem lembrou, mas também pra justificar determinados investimentos em mídia e tralala...

concordo com o que a Roberta escreveu, sobre matrix, o problema é que as continuações "out cinema" Revistas, HQs, Fanfics de Matrix, são muito melhores que os dois filmes seguintes ao primeiro.

Não, não entro em meritos narrativos porque não saco nada (ou quase) disso... whatever, comentei =x eu que sempre só li! iuashduihasuidhsaui

7:03 PM  
Blogger GÊNERO CINEMATOGRÁFICO said...

Olá Léo...
me convenci
cedi...
agora tb tenho um blog
uma brincadeira de blog
pra mim só serve se for divertido
passe lá.
abçs
Cynthia Falcão

2:32 PM  
Blogger Sheila G. Soares said...

Leo, vc citou "A regra da exceção, mas não localizei o post, estou interessada em vê-lo. Pode enviar pelo e-mail se quiser. É para um trabalho sobre Brecht e Lars Von Trier - aleu!

9:29 PM  
Anonymous Anônimo said...

Estou interessada no post "A regra dsa exceção, não o localizei, pode me ajudar? Obrigada

9:32 PM  

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