02 janeiro 2006

Universos restritos

(Este foi o primeiro artigo que escrevi para o Webzine Vitrolaz, acho que em outubro de 2003. Ele pode ser útil para entender um artigo que devo postar nos próximos dias, chamado "Grandes expectativas". De toda forma, abstraiam os comentários específicos e guardem os atemporais)

Semana passada, passei por três experiências extraordinárias.

A primeira foi encontrar, para minha grata surpresa, na edição da Cosac & Naify para A narrativa de A. Gordon Pym, único romance de Edgar Allan Poe, um prefácio de ninguém menos que Fiodor Dostoievski, dando uma visão sua da obra deste que é um dos maiores escritores norte-americanos de todos os tempos. Entre outras coisas, Dostoievski classificava Poe de “estranho”, pois sua obra não é, pelo menos numa análise mais profunda, autenticamente fantástica. Ele (Poe) apenas admite a possibilidade extrema de eventos sobrenaturais, mas procura justificar tudo dentro de um sistema de regras tão coerente quanto convincente.

A segunda experiência foi assistir uma adaptação cinematográfica para uma obra de Allan Moore, um dos nomes mais importantes no mundo das Histórias em Quadrinhos. O filme, homônimo à obra original, é A Liga Extraordinária, do diretor Stephen Norrington. Talvez vocês já tenham lido algo a respeito, ou mesmo chegado às suas próprias impressões em relação ao filme. Não estou querendo aqui falar mais coisas óbvias a respeito do filme, mas apenas discutir um pouco sobre a realidade de mercado do Cinema.

Pegando carona no comentário de Dostoievski, na obra original de Moore havia também, a exemplo de Poe, um universo coerente e convincente dentro de suas próprias regras. Em todos os seus trabalhos e como qualquer escritor sério, Moore embasa muito bem estas regras, e as deixa bem claras para o leitor. E que trama bem construída, dentro deste universo! Que bela história os produtores tinham nas mãos!

Aliás, quando se trata de adaptação dos quadrinhos, os roteiristas normalmente esbarram neste problema: há um universo muito bem construído por trás de cada obra – uma construção muitas vezes impossível de se repetir ao longo de duas horas (quando muito) de filme. E aí normalmente o que acontece é uma decepção do público fiel de quadrinhos, e uma certa incompreensão do público médio que não conhece o universo da história original. OK, realmente é um complicado conseguir absorver a essência de um universo construído em anos para então desenvolver um único filme, uma obra única e independente.

Mas isto não é desculpa.

Não é desculpa porque o trabalho do cineasta, assim como outros artistas que trabalham com narrativa, é contar uma boa história, seja ela original ou adaptada. E da melhor forma possível. Muitas vezes, o mais difícil é conseguir exatamente esta boa história, esta trama que permite tantas possibilidades, tantos desdobramentos surpreendentes e instigantes para quem assiste. Pois bem, se é uma boa história na sua forma original, por que não pode ser um bom filme?

Felizmente, as fichas têm começado a cair na cabeça dos produtores. Os filmes, mesmo respeitando um universo pré-existente, são obras autônomas, com necessidades próprias. O problema das recentes adaptações reside provavelmente na inconsistência da trama em si, que na maioria das vezes não é culpa do roteirista e nem do diretor (não estou aqui eximindo minha classe da responsabilidade, em todo caso), mas do direcionamento comercial que é dado ao filme.

No caso específico de A Liga Extraordinária, o que houve foi uma série de equívocos – mercadológicos, inclusive. Isto porque, numa história povoada de personagens literários, cuja própria trama depende dos atributos e das histórias de cada um deles, seria preciso pressupor uma mínima familiaridade por parte do público com o universo apresentado. E esta fatia de público que melhor teria condições de consumir o filme está mais interessada numa narrativa consistente do que em cidades indo pelos ares (uma coisa não invalida a outra, a propósito).

Ao invés disto, seguiu-se um espetáculo de clichês do gênero “ação”. Clichês estes, aliás, que já não funcionam tanto quanto antes. O público, mesmo dentro de um contexto de cultura de massa, em que os elementos estéticos são mais ou menos padronizados, não tem mais tanto entusiasmo por fórmulas feitas – o que é fácil notar quando vemos filmes que abusam de clichês fracassarem vertiginosamente nas bilheterias recentes. Pelo menos, aquelas fora dos Estados Unidos.

Inevitável pensar no caso de Matrix. Dentro do gênero “ação”, com coisas explodindo, seqüências de luta memoráveis e até um pouco de romance para humanizar a história, a base de tudo era um conceito complexo, extremamente abstrato, mas que pôde ser bem exposto desde o primeiro episódio. E mesmo com todos os excessos da segunda parte, existe um universo extremamente coerente e convincente, aos moldes de Poe, se quiser pensar assim. Tanto que ainda nos envolvemos e nos deixamos penetrar neste universo, que se apresenta a nós de forma clara e sólida. E os filmes têm sido um sucesso de público, mesmo com toda a sua complexidade.

Isto significa que, no fim das contas, vale mais contar uma história coerente do que tentar adivinhar o que o público quer. Se há algo que pode ser dito a respeito disto, é que o público quer ser surpreendido pelo que está sendo mostrado.

E aí chegamos, finalmente, à minha terceira experiência extraordinária desta semana. No domingo, cheguei do Cinema da Fundação, aqui no Recife, de uma sessão lotadíssima para As bicicletas de Belleville, de Sylvain Chomet. Trata-se de uma animação bem fora do convencional, com uma história que demanda esforço não apenas dos personagens, mas do próprio público. Mesmo assim, ao fim de 80 minutos de exibição, a sala não se conteve, e aplaudiu entusiasticamente o que havia visto – algo raríssimo para uma sessão de Cinema. Foi bonito.
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