17 abril 2006

A máscara apenas sorri

Este texto foi escrito a convite de Júlio Cavani para o Diario de Pernambuco e publicado no sábado, 15 de abril de 2006.


Não sou purista a ponto de achar que aspectos da obra original não devem ser mudados numa adaptação. Pelo contrário – a adaptação de uma obra está longe de ser ela mesma; é outra coisa. É célebre a conversa entre Jean-Jacques Annaud e Umberto Eco após O Nome da Rosa (o filme) ficar pronto. “Está aqui o seu livro”, disse o cineasta segurando uma fita, ao que o escritor se obriga a replicar, dirigindo-se à sua estante: “Não, esse aí é o seu filme; meu livro está aqui.”

Reflexões como esta me vieram à cabeça depois que assisti a V de Vingança, produção americana dirigida por James McTiegue e escrita e produzida pelos Irmãos Wachowski, adaptada da série criada pelos britânicos Alan Moore e David Lloyd nos anos 80. De cara, eu nem me incomodaria muito com os diálogos excessivamente didáticos, reduzindo a densidade do teor anarquista da obra original ; ou pelo fato de terem mexido melodramaticamente na essência dos personagens, deixando tudo mais passível de ser aceito pelo American Way of Thinking e portanto de não ser rechaçado por um público médio; e nem mesmo a contextualização política fictícia ao extremo, cruel ao extremo, caricata ao extremo, sem guardar uma possível projeção mais direta com os cenários totalitários da Inglaterra (da época dos quadrinhos) e ou dos EUA (da atual época do filme).

O que incomodou mesmo foi, além da soma desses pontos, ver que a história do filme era o incoerente em si. Metáforas visuais, como o herói anarquista saindo do cativeiro em chamas erguendo os braços em sinal de força, são clichês intrinsecamente contraditórios: como um personagem anarquista, partidário do não-poder, pode celebrar sua liberdade numa pose emblemática ao poder? Nos quadrinhos, a cena é retratada de forma parecida, porém o homem que sai das chamas mantém os braços baixos, apenas olhando seus captores com desprezo, e sumindo em seguida: um herói das sombras, articulador dos fatos – não um pretenso mestre deles. Essa essência é proposta no filme e não é respeitada por ele – problema do roteiro em si, não do simples fato de ser uma adaptação.

E acho até que o buraco é mais embaixo – parece mesmo uma questão de “compatibilidade de mercado”: o V de Vingança de Moore e Lloyd é praticamente uma obra punk, feita para um mercado alternativo dos anos 80, anti-establishment mesmo. Essa incoerência toda pode parecer meio óbvia se pensarmos que essa obra foi jogada no cinema por um dos maiores estúdios da maior indústria do maior modelo de establishment do mundo. Tudo parece estar apenas mascarado por esse ar de sofisticado, transgressor e original, mas vem reforçar os valores de sempre: a uma força opressora, ao perigo de um regime totalitário, justifica-se a oposição de outra força opressora, de outro regime que pouco é diferente.

Deixo meu raciocínio em aberto, pra não ser eu mesmo tão totalitário. E concluo com um trecho da obra original: “O pano de fundo se rasga, os cenários desaparecem e o elenco é devorado pela peça. Há um assassino na matinê, há cadáveres na platéia. E os produtores e os atores não estão certos se o show terminou. Com olhares oblíquos, esperam suas deixas. Mas a máscara apenas sorri.”

2 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Ótimo texto, Leo. Vou aparecer sempre por aqui.
Quanto ao assunto em questão, não posso opinar. Não assiti o filme e nem cheguei a folhear os quadrinhos.
Beijos,

6:29 AM  
Anonymous Anônimo said...

tão falando que só desse filme mas eu nem me animei ainda. quem postou sobre ele foi zé guilherme, não sei se tu viu. www.quadrifonia.blogspot.com

beijo pra tu, d.

2:59 PM  

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