02 janeiro 2006

Algumas verdades

Nestas últimas semanas tive a oportunidade de participar de festivais e, mais importante, ver muitos filmes, dos mais diversos gêneros. Também fui convidado a ministrar uma nova palestra sobre arquétipos e estruturas míticas. Como o tema já foi exaustivamente exposto em diversas ocasiões, resolvi usar de uma abordagem diferente da que vinha usando: escapar um pouco dos manuais de narrativa, na verdade, da própria perspectiva puramente narrativa, com categorizações e aplicações práticas, para falar de uma maneira mais genérica sobre mito e suas personificações. Aí retomei as fontes, Aristóteles na Poética Clássica, a teoria arquetípica de Jung e, é claro, os estudos mitológicos de Campbell.

Engraçado que este trabalho de reorganizar o conhecimento com referências mais antigas bateu com o que vinha sentindo ao ver filmes de ficção e documentários, bem como com algumas coisas que vinha conversando com meus alunos na Universidade, algumas de suas impressões sobre filmes, e tal. Aí, comecei a viajar nessa história que existe muito antes de Pedro perguntar a Cristo “Mestre, o que é a verdade?”.

Partindo da concepção de Aristóteles, em estabelecer a Poesia (à época, qualquer forma de manifestação artística) como “imitação” da vida, é natural pensar que alcançamos um nível de expressão da verdade, dos fatos e atitudes do ser humano, bastante intenso quando nos dispomos a comunicar através de uma forma estética. De fato, o próprio filósofo propõe que a Poesia contém em si mais elevação do que a História (postulada como o relato fiel de acontecimentos), pois aborda “verdades gerais” ao invés de se ater a “fatos particulares”.

Esta linha de pensamento nos leva imediatamente aos estudos de Campbell sobre mitos. O mito seria uma forma narrativa tradicional que expressa valores e posturas éticas de um povo. Originalmente de cunho religioso ou ideológico, o Mito experimentou um paulatino processo de retroalimentação. Ou seja, hoje, temos diversas histórias que se manifestam e se complementam, estando mais ligadas a valores gerais humanos do que a religiões específicas. O mito se alimenta de si mesmo.

E no nosso cotidiano estamos continuamente expostos às velhas estruturas narrativas míticas. Principalmente, abstraindo para o conceito de arquétipos de Jung, uma espécie de personificação do mito em certos aspectos da personalidade humana – um conjunto de atitudes comuns da nossa espécie frente a certas situações. Quantas vezes nos vemos diante de um chefe ou professor que é ora cruel ora paternal? Isso são manifestações, máscaras de um velho mentor sábio revezando com o de um rígido guardião de fronteira. E quanto a relações amorosas, quantas vezes nos colocamos numa posição de dependência da pessoa amada? O que é isto senão à espera de um príncipe encantado, que por pior que seja nossa situação sempre vai surgir do nada para nos salvar?

E se os arquétipos e os mitos estão presentes no cotidiano, que dizer das histórias a que somos expostos? Implícita em qualquer conto que lemos, ou uma reportagem que vemos na TV, ou uma música que escutamos, um filme a que assistimos, está a antiga forma de contar histórias. Algumas vezes, estas histórias são mero relato de fatos particulares; outras, expressam uma verdade geral, comum a todos, por uma forma estética. “Imitando” a vida, como colocaria Aristóteles, esta visão se propõe, sim, a apresentar uma verdade, um ponto-de-vista sincero.

Em contraponto à percepção desta verdade geral, que se percebe subjetivamente, nos vemos diante de um mundo extremamente concreto e materializado. Aí chegamos a algo que parece meio sintomático hoje em dia: a incapacidade de abstração de leitura, diante de um outro conceito retórico que é o da verossimilhança. A história, por mais fantástica e impossível que pareça, deve simplesmente apresentar consistência dramática, coerência com as regras do universo onde se passa, e estas regras, sim, devem estar claras. Tudo para expressar algo, a verdade expressiva do artista, ou simplesmente a verdade expressiva da obra, que é (ou deve ser) até maior que a do artista. O próprio Aristóteles, ainda na sua “Poética” (cap. 19), diz que “quando plausível, o impossível deve se preferir a um possível que não convença”.

Há um exemplo bom disso em filmes recentes de ação: "Matrix" (1999), de Larry & Andy Wachowsky, e "Missão Impossível 2" (Mission: Impossible II, 2000), de John Woo. Na ficção científica dos irmãos americanos, temos impossibilidades evidentes: pessoas dando saltos numa rua inteira, caminhando pelas paredes, movimentando-se numa velocidade extraordinária. Mas tudo é justificado por um sistema de regras bem claro: trata-se de um mundo virtual, no qual algumas mentes são capazes de abstrair e subverter as regras que na verdade apenas simulam àquelas que estamos acostumados. Tudo, portanto, é verossímil. No caso do filme “Super Cruise Me”, o mundo em que a história toma lugar é o nosso, com todas as regras da física plenamente válidas. Aí algumas das manobras fantásticas com motocicletas, os incríveis golpes acrobáticos e tudo mais são, além de impossíveis, implausíveis, pois não há nenhuma justificativa narrativa que embase essa quebra de regras. A trama, portanto, fica inconsistente, deixando de se tornar uma história concisa para se tornar um mero espetáculo de possibilidades estilísticas.

E o público parece ter sido acostumado a uma posição passiva diante disso tudo. Não identifica um universo poético em cada obra, porque isso não lhe é oferecido – um universo, enfim, que seja verdadeiro em si, que expresse suas próprias verdades e convide o público a se envolver. E aí, as pessoas parecem simplesmente confundir ou tratar a verdade artística com a verdade cotidiana, misturando, segundo os conceitos clássicos, a Poesia com a História. Vou usar um outro exemplo pra ver se me explico melhor.

Outro dia, tinha ido assistir ao "Kill Bill – Vol. 1", de Quentin Tarantino, no Teatro do Parque. O público do Parque é bem particular, reage muito à flor-da-pele ao filme. A um certo momento, você parece estar numa partida de hóquei, ou algo do gênero. Engraçado que, quando a Noiva (personagem de Uma Thurman) cortava o membro e fazia da artéria jorrar sangue, o pessoal gritava: “Eita, que mentira!”, ou “É chuveirinho, é?” Isso sem falar quando os personagens quase flutuavam sobre espadas, corrimãos e beiradas de telhados. Mesmo diante de um ambiente evidentemente estiloso, com um universo bem particular usando de uma poética bem clara e específica, as pessoas ainda esperavam que regras da física se aplicassem e que as últimas gotas de sangue não fossem bombeadas pra fora.

Talvez seja mais fácil perceber a problemática da abstração de leitura se tomarmos dois filmes de um mesmo autor, cronologicamente próximos um do outro, e que têm um mesmo universo de conteúdo. Pensei em Michael Moore e seus dois últimos filmes: "Tiros em Colombine" ("Bowling for Colombine", 2002) e "Farenheit 11 de setembro" ("Farenheit 9/11", 2004). De um lado, temos uma estrutura de roteiro extremamente engenhosa, e nos envolvemos mais em nível estético-expressivo mesmo, pois as situações que Moore nos propõe são cômicas, porém cheias de significado, expondo a visão do autor de uma forma bem coerente e intrínseca à própria obra. O discurso anti-armamentista é exposto não como um texto informativo ou ideológico, porém diluído numa série de seqüências criativas e variantes. No segundo filme, temos um conteúdo evidentemente panfletário, sem muita preocupação com variação expressiva, no sentido de criação das seqüências. É o texto que comanda tudo, e as imagens se colocam num lugar meramente ilustrativo. O discurso é coeso, expressando claramente uma posição política, e extremamente bem-construído. Mas Moore não usa das possibilidades estéticas tanto quanto no seu filme anterior. Aristóteles talvez classificasse Colombine como Poesia, e Farenheit como História.

Em termos expressivos, todos os casos (com exceção do Missão Impossível 2, cuja inconsistência já detectamos) são verdadeiros em si, ou seja, estabelecem um universo narrativo para o espectador e se mantêm fiéis a este universo. E esta “verdade expressiva” reflete alguns aspectos das nossas verdades cotidianas, os fatos particulares que ocorrem no nosso dia-a-dia. Justamente por, expondo-se sinceramente, discute uma verdade geral, mítica, que está presente em maior ou menor medida em cada um de nós. Creio que precisamos apenas criar o hábito de estarmos sensíveis a estas verdades, e ver que tipo de verdade geral ela está exprimindo e como essa verdade geral se aplica na nossa verdade cotidiana.

A Poesia encerrando a História, e uma posição crítica e reflexiva sobre ela.
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