02 janeiro 2006

Por que ver os clássicos?

(Esta eu publiquei no Vitrolaz faz uns dois anos, mas me parece válido republicar agora que tenho um blog. Talvez por conta de estar lidando com um brinquedinho novo, não sei. Mas, lembro que na época os comentários feitos ao texto culminaram em listas bem interessantes de filmes clássicos. Então, enfim, aqui vai:)

Janeiro é teoricamente um mês mais tranqüilo, em que se começa a planejar tudo para o ano que chega. Desde projetar as metas de desempenho de uma empresa ou cair no velho clichê de tomar decisões pessoais do tipo “este ano eu paro de fumar”. Geralmente, coisas que raramente são cumpridas, por mais entusiasta que seja a nossa esperança. Mesmo assim, é um exercício válido este de se planejar para ter uma vida melhor, para ser uma pessoa melhor. Sendo assim, também atendendo ao pedido de uma aluna minha, eu gostaria de adicionar à lista de intenções para o novo ano um outro aspecto de crescimento pessoal: ver filmes.

Sempre achei muito difícil estabelecer um elenco de filmes favoritos, de músicas favoritas, de livros favoritos, enfim, de coisas favoritas em geral. A humanidade produziu muitas coisas boas nestes séculos em que tomou consciência de si, e todos nós temos muitas lacunas a serem preenchidas. Mas como o tal pedido pedia para indicar “filmes clássicos e inteligentes”, resolvi fazer uma brincadeira com o título do ensaio de Italo Calvino. Ao invés de “ler”, referindo-se à literatura, usei o “ver”, logicamente com o intuito de propor uma lista de filmes. E queria aproveitar pra convidar vocês a usar o espaço de comentários para sugerir uma lista própria, como forma de trocar idéias e “promover uma maior integração entre as pessoas” e toda esta conversa de ano novo. E além do mais, bom, pode ser divertido, certo?

OK, eu começo. Mas antes, vamos instituir algumas regras para a formação das nossas listas, para que todos possam jogar em iguais condições.

Em primeiro lugar, vamos combinar um número máximo de obras sugeridas, pra esta coluna não se tornar um catálogo de sugestões. Digamos, muito arbitrariamente, vinte (20). Acho um bom número, nem grande, nem pequeno, e dá pra juntar um bom volume de “trabalho” para o nosso tempo eventualmente livre nestes primeiros meses do ano.

Em segundo, vamos discutir um pouco o conceito de “clássico”. Dos verbetes que encontrei no Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa, considerei que dois deles melhor correspondiam ao conceito que quero propor. Segundo eles, “clássico” é “(...) obra ou autor que, por sua originalidade, pureza de expressão e forma irrepreensível, constitui modelo digno de imitação”, ou “que é considerado como modelo do gênero”. Sendo assim, não vamos nos restringir à leitura “clássica” do conceito de “clássico” (perdoem o trocadilho), ou seja, um célebre do passado que obteve destaque histórico – algo “antigo”. De fato, se formos nos ater às classificações das locadoras e canais de TV, chegaremos mais nesta definição do que propriamente neste conceito que estou propondo: qualquer filme “antigo” é um filme “clássico”. Eu considero que, no entanto, podemos usar exemplos mais recentes que consideremos “modelo”, e que, claro, tenham alcançado um nível de destaque que pelo menos faça com que mais de um nós se lembre deles. Aí, vale usar o bom senso.

Em terceiro, e depois disto deixo de suspense e revelo minha lista, vamos determinar que precisamos justificar a presença de cada filme na nossa lista – porque ele nos tocou, porque o consideramos importante na história do cinema, enfim, porque é fundamental vê-lo. Assim, nossa escolha deixa de ser puramente instintiva e passa a ser consciente, o que pode até ajudar a nós mesmos a saber o que nos atrai num filme. Os clássicos, no caso, servem não apenas de influência para as gerações futuras de “fazedores de filmes”, mas também (e sobretudo) para o público formar um repertório de apreciação e leitura e trazer sua exigência em relação a filmes para um nível mais apurado.

Pronto, sem mais delongas, posso finalmente revelar minha lista. Com uma última ressalva, porém: certamente deixarei de fora algumas grandes obras, seja por falta de espaço, puro esquecimento ou uma lacuna cultural minha mesmo. Também procurei sugerir alguns autores, em filmes menos óbvios deles. Mas, como disse antes, a participação de vocês vai fazer com que esta lista de sugestões cresça e vá ficando completa aos poucos. Aqui vai, então, em ordem cronológica:

1- A VIAGEM À LUA (“Le voyage dans la Lune”, 1908), de Georges Méliès. Falando de clássicos influenciando gerações futuras, começo sugerindo a obra mais famosa do homem que é tido como responsável por tornar o cinema uma arte narrativa; neste curta de pouco mais de 10 minutos, Méliès abusa da ficção científica, sem o medo e o pudor que muitos de nós herdamos hoje com a perda da ingenuidade tecnológica.

2- O ENCOURAÇADO POTEMKIN (“Bronienosets Potemkin”, 1925), de Sergei Eisenstein. Não poderia deixar de fora da lista um representante do grupo que estabeleceu princípios deste elemento específico da gramática cinematográfica, a montagem. Cada plano é extremamente expressivo, inserido em meio a seqüências memoráveis, fluidas e plenamente integradas na narrativa.

3- TEMPOS MODERNOS (“Modern times”, 1936), de Charles Chaplin. Embora seja lembrado pelas comédias ingênuas e minimalistas, Chaplin tem seus momentos sérios e comoventes. Este filme apresenta um pouco a condição do social do americano médio na crise pós-quebra da bolsa de Nova York, quase esboçando uma posição política, sem deixar de ser engraçado.

4- CIDADÃO KANE (“Citizen Kane”, 1941), de Orson Welles. Conjugando como poucos as possibilidades técnicas e expressivas da arte cinematográfica, Welles compõe este retrato do homem de sua época – pelo menos em termos de desejo. Outra boa pedida deste mesmo autor é “A marca da maldade” (“Touch of evil”, 1958), que dentre os seus vários atributos tem uma das melhores seqüências de abertura da história.

5- FELICIDADE NÃO SE COMPRA (“It’s a wonderful life”, 1948), de Frank Capra. Alguns poderiam considerar este filme um melodrama ingênuo; eu o vejo mais como um maduro exercício narrativo de um diretor com um número impressionante de filmes realizados. Envolve pela emoção, é verdade, porém de forma inteligente e coesa.

6- JANELA INDISCRETA (”Rear window”, 1954), de Alfred Hitchcock. O Mestre do Suspense não poderia ficar de fora desta lista. Porque ele é muito mais do que simplesmente este título. Sua obra é tão diversa quanto inconfundível, um caso raro de domínio técnico e narrativo. Este filme, particularmente, impressiona por se passar praticamente num único lugar (com o protagonista imóvel numa cadeira devido a uma fratura na perna), e manter a tensão o tempo todo, o que, aliás, é uma marca registrada do autor.

7- QUANDO VOAM AS CEGONHAS (“Letjat zhuravli”, 1957), de Mikhail Kalatozov. Não há muita gente que conheça este diretor, que não apenas surpreende pelo experimentalismo técnico, mas sobretudo por aplicar com muita propriedade os recursos de câmera e montagem a serviço de uma obra extremamente expressiva. Este filme, que ganhou a Palma de Ouro em Cannes (em 1958, se não me engano) é um exemplo evidente disto. Além de ser belíssimo, é claro.

8- A AVENTURA (“L’Avventura”, 1960), de Michelangelo Antonioni. Eis um de meus cineastas favoritos. Sua narrativa é sutil, consistente, sofisticadíssima. O ritmo aparentemente lento causa uma tensão que faz a gente esquecer do tempo. Quando vê, a história acabou, e você é capaz de lembrar de cada detalhe dela. Respire fundo antes de começar, e se esqueça por algumas horas que existe um mundo lá fora. Vale a pena.

9- OITO E MEIO (“8½”, 1963), de Federico Fellini. Quem leu um artigo anterior meu, “Sobre direção de cinema”, já deve ter notado que eu adoro filmes que falam sobre fazer filmes. No caso deste, ressalto apenas que se trata de Fellini, outro dos meus favoritos. Ele constrói o roteiro de um jeito tão desconexo e tão integrado ao mesmo tempo, que o filme vai nos conduzindo por todas as sensações possíveis dentro da cabeça de um diretor em conflito. Tem momentos que a gente se sente invadindo a privacidade do personagem. O fim é apoteótico, não apenas do ponto de vista de forma, mas sobretudo do emotivo mesmo.

10- DR. FANTÁSTICO (“Dr. Strangelove or How I learned to stop worrying and loved the bomb”, 1964), de Stanley Kubrick. Outro que cito um filme apenas para instigar assistir a outros. Kubrick parece deixar a platéia sempre pra trás, sempre perseguindo a narrativa. É uma tensão constante, quase cansativa, mas daquelas que a gente se sente recompensado pelo esforço ao final. Falando especificamente deste filme, foi um dos mais divertidos que eu já vi. Ao mesmo tempo, fala da perspectiva bélica norte-americana e da tensão política mundial de uma maneira surpreendentemente atual.

11- PLAYTIME (“Playtime”, 1967), de Jacques Tati. Quem não viu “Meu Tio” (“Mon Oncle”), deste francês minimalista, assista. Quem já viu, pode pular para este outro filme dele, que mostra uma Paris bem diferente da visão “clássica” (por assim dizer). Pra mim, não é apenas uma obra agradável de ver; parece-me um homem que se reconhece ultrapassado em seu próprio tempo, e percebe que a única coisa que pode ainda acrescentar ao mundo é dar uma visão sua de todo este seu processo. Muito verdadeiro.

12- A NOITE AMERICANA (“La nuit americaine”, 1973), de François Truffaut. Acho que já estou me repetindo, mas se trata de outro filme sobre fazer filmes. Particularmente pra mim, que tenho tido vivências em sets de filmagens já faz algum tempo, morro de rir com as situações propostas. Paralelamente, Truffaut faz uma profissão de fé, com personagens consistentes e bem particulares, e há momentos em que parece sintetizar todas as coisas que podem dar certo ou errado numa produção. E olhe que não são poucas.

13- MOTORISTA DE TÁXI (“Taxi Driver”, 1976), de Martin Scorcese. Acho que foi um dos primeiros filmes de Scorcese a que tive acesso – outro que vale a pena ver várias obras. O mito do herói americano é posto à prova o tempo todo, quando vemos o personagem controverso de Robert de Niro perdendo-se ao mesmo tempo em que se encontra. Tudo caminhando para o que diz Carrière sobre sua perspectiva do final de um filme: tão surpreendente quanto inevitável. Pra quem não conhece bem o diretor, espero que este seja o início de uma grande amizade.

14- NOIVO NEURÓTICO, NOIVA NERVOSA (“Annie Hall”, 1977), de Woody Allen. Que dizer de Woody Allen, então? Especialmente deste filme, que na minha modesta opinião é um dos mais engraçados e expressivos dele. Ele faz de tudo o que se pode fazer num roteiro, indo de uma narrativa fluida e sólida até trechos de metalinguagem evidente. Tudo isto sem forçar a barra, muito pelo contrário, aliás. No mais, diálogos deliciosos, como de costume.

15- APOCALIPSE NOW (Id., 1978), de Francis Ford Coppola. É clichê dizer isto, mas se trata mesmo da obra máxima do Coppola. O início é impressionante, bem representativo da estética dos anos 70 (“clássico”, portanto), já convidando o espectador a se abandonar na história. A platéia segue o ritmo do filme, tomando cada vez mais conhecimento do conflito do protagonista na medida exata em que este vai se aproximando do seu objetivo. Além do mais, a produção é impecável.

16- O SHOW DEVE CONTINUAR (“All that jazz”, 1979), de Bob Fosse. Falar de seu próprio universo pode parecer uma tarefa fácil. Mas poucos conseguiram tornar isto realmente interessante de forma tão criativa, sincera e coerente. Coreógrafo e escritor de vários musicais, Fosse fez esta bela quase-autobiografia, numa estrutura de roteiro original e envolvente. Rob Schneider está maravilhoso e Jessica Lange linda de morrer – vocês logo vão entender o que eu quero dizer.

17- O CAÇADOR DE ANDRÓIDES (“Blade Runner”, 1982), de Ridley Scott. Falando em obras máximas, um clássico da primeira metade dos anos 80. A estrutura de roteiro é toda de filme noir, com o detetive atormentado fazendo intervenções em voice over o tempo todo, enquanto a ação policial vai rolando num universo inusitado e muito bem construído. De longe, o melhor filme de Ridley Scott, mostrando que domina bem a gramática cinematográfica por seu trabalho de vários anos na direção de comerciais.

18- RAN (Id., 1985), de Akira Kurosawa. Citei esta obra já de fim de carreira, por se tratar do caso de um artista oriental apresentando sua visão de uma célebre obra ocidental (Rei Lear, de Shakespeare). Ao mesmo tempo que universal, mostrando emoções humanas de forma escancarada, a forma de contar esta história é bem específica: profunda, tensa, lenta apenas o bastante para nos trazer totalitariamente para dentro da trama. Kurosawa é um dos mestres que consegue fazer com que sua cultura local se abra para uma perspectiva completamente aberta e acessível a todos.

19- DELÍRIOS DE HOLLYWOOD (“Barton Fink”, 1991), de Joel Coen. Eu sou suspeito pra falar deste filme por, basicamente, dois motivos: primeiro, sou roteirista, como o protagonista do filme, e tenho dramas, conflitos e desejos parecidos com os dele; segundo, sou fã meio incondicional dos Irmãos Coen, que estabelecem universos e situações fantásticas de uma forma como se fossem a coisa mais natural do mundo, o que é inquietante. Só quando paramos pra pensar é que percebemos o efeito que os filmes deles têm em nós. Aqui, particularmente, eles nos mostram o quanto escrever pode ser perigoso.

20- MATRIX (“The Matrix”, 1999), de Larry & Andy Wachowski. Gosto de analisar as duas coisas em separado, o primeiro Matrix e a trilogia completa – e gosto das duas, de certa forma. É legal perceber que, numa época em que os efeitos digitais alcançaram o máximo da perfeição técnica, este filme quase alternativo conseguiu renovar o padrão, voltando às bases óticas do cinema. É um exemplo de como o cinema pode ser coletivo, com cada área contribuindo para a criação algo uno, orgânico e expressivo. Um inegável marco na história do cinema.

Só pra terminar, não queria deixar de citar um filme que considero meio hors concours nesta lista: DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL (1964), de Glauber Rocha. Não sou o único a achar este filme um dos mais expressivos de um dos cineastas mais expressivos da história do cinema que, por acaso ou não, é brasileiro.

Muitos diretores e obras igualmente importantes ficaram de fora, mas estabeleci apenas 20, como falei. De toda forma, aguardo as contribuições de vocês para incrementar nossa lista, e desejo um ótimo 2004 (*) a todos. E, é claro, bons filmes!

(*) Adaptando o artigo para os dias atuais, ótimo 2006 e excelentes anos subseqüentes. Olhando à distância, eu acrescentaria à lista o maravilhoso "Crepúsculo dos Deuses" ("Sunset Boulevard", 1950), de Billy Wilder, mas não saberia qual tirar fora. De toda forma, fica o registro, e o aguardo.
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