Grandes Expectativas
Então, antes de entrarmos no assunto em si, vamos recapitular. O primeiro texto que escrevi para esta coluna se chamava “Universos Restritos” e tomava uma certa adaptação de Quadrinhos para Cinema (“A Liga Extraordinária”) como uma linha-guia para analisar aspectos da linguagem cinematográfica contemporânea submetidas totalitariamente a princípios de marketing, e os possíveis equívocos decorrentes dessa submissão acrítica. Curiosamente, este artigo também parte de uma adaptação dos Quadrinhos para o Cinema, esta de um personagem mais do senso comum – falo da mais recente versão cinematográfica do eterno Cavaleiro das Trevas, “Batman Begins”. E, a partir disto, sobre expectativas e como lidamos com elas.
Uma última observação antes de continuar: sim, sou fã do Batman desde criancinha.
Parecia perfeito. Depois de dois fiascos by Joel Schumacher, um filme dirigido por Christopher Nolan, um jovem diretor no máximo brilhante e no mínimo competente (acho “Amnésia” excepcional e “Insônia” mais ou menos, respectivamente), contando com um ator não-estrela no papel principal (sem uma imagem a manter intacta, portanto) e uma série de grandes estrelas nos papéis coadjuvantes (com imagens já intactas o suficiente, portanto), finalmente o bom e velho Batman teria um filme digno de sua longa tradição dramática.
Esta “longa tradição” começou em 1939, com uma história escrita e desenhada por Bob Kane. Um ano antes, havia acontecido a estréia de um outro personagem célebre da DC Comics, o Super-Homem – um arquétipo moderno para o herói poderoso, altruísta e descerebrado, pronto para colocar sua incrível força à disposição do Sistema. Todos conhecem a história desse alienígena que cai na Terra e é acolhido e educado pela generosidade de um casal de camponeses americanos. As centenas de teorias possíveis tanto para a criação quanto para a aceitação do personagem podem ser exaustivamente discutidas, mas eu fico com a versão de algo que vem do alto como dádiva de Deus aos homens pronto para manter a ordem e o progresso. Qualquer semelhança com uma versão pop de Jesus Cristo pode não ser uma coincidência tão mera.
Batman, ao contrário, é fruto de um pressuposto quase oposto, extremamente humano, algo que vem da Terra mesmo: o trauma de um garoto de 8 anos que vê seus pais serem mortos por um criminoso sem rosto bem à sua frente. A primeira história, inclusive, é algo bem mais sombrio, muito mais parecido com os quadrinhos e filmes de referência noir da época do que no glamouroso estilo clean do outro super-herói, o divino lá. E todo o universo desenvolvido a partir de então é repleto de paranóias e psicoses – tanto da parte do vigilante quanto da parte “do mal” (dentro da já fadada visão maniqueísta do mercado quadrinístico americano).
Outro dia, estava conversando com um amigo que o Batman é o único personagem totalmente plausível dos quadrinhos. Trata-se, afinal, de um psicótico: um cara tem um puta trauma na infância, e aí passa vinte anos de sua vida treinando pra se vestir de morcego e bater em criminosos à noite. Tudo dentro de um senso rígido de justiça, porém que não é o senso comum: vigilantes independentes não são admitidos na sociedade – conceito que não funciona numa cidade tão corrupta quanto Gotham. Enfim, uma cidade louca, com vilões loucos e um herói igualmente louco – um universo diversificado, coerente e consistente, e como tal extremamente rico de possibilidades narrativas.
Bom, como vimos, o aspecto psicológico deste universo é fundamental para entendimento e desenvolvimento do personagem – pelo menos enquanto potencial. E aí vem Joel Schumacher dizendo no último filme que era hora do Batman perder essa psicose pra ser mais ‘paizão’ do Robin McDonnel e da BatGirl Silverstone (“Batman & Robin”, 1997). Apesar de ser de índole pacífica e não gostar de conflitos, confesso que fiquei com vontade de bater nele com o mesmo taco de beisebol que Michael Douglas usou num filme anterior seu, “Dia de Fúria” (“Falling Down”, 1993).
Então, enfim, vieram os primeiros rumores de que a próxima adaptação seria entregue ao time que mencionei. E aí, veio uma expectativa imensa, porque admirava o trabalho de todos eles. Porém, novamente, esbarramos em alguns aspectos que penso serem de ordem mercadológica. Trata-se, afinal de contas, de um blockbuster, com retorno comercial exigido e, portanto, toda aquela série de formulinhas para fazer de um filme um sucesso.
Não vou entrar muito no mérito do filme em si para não estragar a expectativa de ninguém por conta da minha frustração. É um filme que merece ser visto, afinal, e com certeza muito mais digno do que os anteriores – o talento da equipe citada faz de fato diferença. De toda forma, vou apenas mencionar que achei que todo o potencial psicológico ficou restrito a se encaixar numa conduta moral meio pastiche, contraditória e hipócrita em si, de acordo com uma visão maniqueísta, assistencialista e até, por que não dizer, intervencionista americana. (Cuidado! Teoria paranóica de conspiração à vista! Releve quem puder!)
Mas, vem a pergunta: se existe tanto essa percepção de que, no fim das contas, estamos diante de um mercado, somente um mercado e nada mais que um mercado, por que continuamos a nutrir tantas expectativas em torno de uma obra que sabemos nascer nesse contexto?
Claro que tem a ver com a história de vida de cada um. No caso deste espectador aqui, um aprendiz de cinéfilo que cresceu fã de um dos personagens mais densos das HQs, é natural esperar muito de qualquer adaptação que seja. Mas sempre apreciei um Cinema intenso, profundo e consistente – na verdade, não apenas um Cinema assim, mas qualquer forma narrativa que me dissesse algo tão forte quanto. E ver todo essa força sendo enfraquecida pela obrigatoriedade de explosões pirotécnicas espetaculares, gags caindo de pára-quedas e cenas românticas praticamente burocráticas é algo que vai além de conhecer ou não um personagem.
Isto me remete a uma outra experiência de adaptação recente, “A Fantástica Fábrica de Chocolate” (“Charlie & the Chocolate Factory”), de Tim Burton, roteiro de John August. Na primeira adaptação do livro de Roald Dahl (que então assinava também o roteiro), “Willy Wonka & the Chocolate Factory” (1971), dirigida por Mel Stuart, tínhamos uma perspectiva quase bizarra de um universo infantil improvável. Conhecendo a perspectiva autoral do próprio Burton, seria natural esperar que um remake do filme fosse dirigido com ele. Novamente, no entanto, houve uma série de concessões para tornar o filme um pouco mais “família”, politicamente correto mesmo. Não acho que isso chegue a prejudicar o trabalho, porém me peguei meio aborrecido às vezes. Pode ser só minha chatice mesmo, mas novamente cheguei perto de mais uma expectativa frustrada.
E quanto àquela pergunta de dois parágrafos atrás, bem, creio não ter a resposta. As expectativas existem, inevitavelmente existem. Não há como escapar delas, em qualquer instância, muito menos quando nos envolvemos um pouco mais pessoalmente nas coisas. Há talvez como pegar mais leve, reconhecer que estas grandes esperanças que nutrimos podem resultar em grandes frustrações ou pequenas boas surpresas, sempre nos sujeitando ao que o destino, ou o acaso, nos propõe.
Na dúvida, sempre tenha uma pastilha de magnésia bisurada à mão – ou qualquer outra forma de alívio imediato.
Uma última observação antes de continuar: sim, sou fã do Batman desde criancinha.
Parecia perfeito. Depois de dois fiascos by Joel Schumacher, um filme dirigido por Christopher Nolan, um jovem diretor no máximo brilhante e no mínimo competente (acho “Amnésia” excepcional e “Insônia” mais ou menos, respectivamente), contando com um ator não-estrela no papel principal (sem uma imagem a manter intacta, portanto) e uma série de grandes estrelas nos papéis coadjuvantes (com imagens já intactas o suficiente, portanto), finalmente o bom e velho Batman teria um filme digno de sua longa tradição dramática.
Esta “longa tradição” começou em 1939, com uma história escrita e desenhada por Bob Kane. Um ano antes, havia acontecido a estréia de um outro personagem célebre da DC Comics, o Super-Homem – um arquétipo moderno para o herói poderoso, altruísta e descerebrado, pronto para colocar sua incrível força à disposição do Sistema. Todos conhecem a história desse alienígena que cai na Terra e é acolhido e educado pela generosidade de um casal de camponeses americanos. As centenas de teorias possíveis tanto para a criação quanto para a aceitação do personagem podem ser exaustivamente discutidas, mas eu fico com a versão de algo que vem do alto como dádiva de Deus aos homens pronto para manter a ordem e o progresso. Qualquer semelhança com uma versão pop de Jesus Cristo pode não ser uma coincidência tão mera.
Batman, ao contrário, é fruto de um pressuposto quase oposto, extremamente humano, algo que vem da Terra mesmo: o trauma de um garoto de 8 anos que vê seus pais serem mortos por um criminoso sem rosto bem à sua frente. A primeira história, inclusive, é algo bem mais sombrio, muito mais parecido com os quadrinhos e filmes de referência noir da época do que no glamouroso estilo clean do outro super-herói, o divino lá. E todo o universo desenvolvido a partir de então é repleto de paranóias e psicoses – tanto da parte do vigilante quanto da parte “do mal” (dentro da já fadada visão maniqueísta do mercado quadrinístico americano).
Outro dia, estava conversando com um amigo que o Batman é o único personagem totalmente plausível dos quadrinhos. Trata-se, afinal, de um psicótico: um cara tem um puta trauma na infância, e aí passa vinte anos de sua vida treinando pra se vestir de morcego e bater em criminosos à noite. Tudo dentro de um senso rígido de justiça, porém que não é o senso comum: vigilantes independentes não são admitidos na sociedade – conceito que não funciona numa cidade tão corrupta quanto Gotham. Enfim, uma cidade louca, com vilões loucos e um herói igualmente louco – um universo diversificado, coerente e consistente, e como tal extremamente rico de possibilidades narrativas.
Bom, como vimos, o aspecto psicológico deste universo é fundamental para entendimento e desenvolvimento do personagem – pelo menos enquanto potencial. E aí vem Joel Schumacher dizendo no último filme que era hora do Batman perder essa psicose pra ser mais ‘paizão’ do Robin McDonnel e da BatGirl Silverstone (“Batman & Robin”, 1997). Apesar de ser de índole pacífica e não gostar de conflitos, confesso que fiquei com vontade de bater nele com o mesmo taco de beisebol que Michael Douglas usou num filme anterior seu, “Dia de Fúria” (“Falling Down”, 1993).
Então, enfim, vieram os primeiros rumores de que a próxima adaptação seria entregue ao time que mencionei. E aí, veio uma expectativa imensa, porque admirava o trabalho de todos eles. Porém, novamente, esbarramos em alguns aspectos que penso serem de ordem mercadológica. Trata-se, afinal de contas, de um blockbuster, com retorno comercial exigido e, portanto, toda aquela série de formulinhas para fazer de um filme um sucesso.
Não vou entrar muito no mérito do filme em si para não estragar a expectativa de ninguém por conta da minha frustração. É um filme que merece ser visto, afinal, e com certeza muito mais digno do que os anteriores – o talento da equipe citada faz de fato diferença. De toda forma, vou apenas mencionar que achei que todo o potencial psicológico ficou restrito a se encaixar numa conduta moral meio pastiche, contraditória e hipócrita em si, de acordo com uma visão maniqueísta, assistencialista e até, por que não dizer, intervencionista americana. (Cuidado! Teoria paranóica de conspiração à vista! Releve quem puder!)
Mas, vem a pergunta: se existe tanto essa percepção de que, no fim das contas, estamos diante de um mercado, somente um mercado e nada mais que um mercado, por que continuamos a nutrir tantas expectativas em torno de uma obra que sabemos nascer nesse contexto?
Claro que tem a ver com a história de vida de cada um. No caso deste espectador aqui, um aprendiz de cinéfilo que cresceu fã de um dos personagens mais densos das HQs, é natural esperar muito de qualquer adaptação que seja. Mas sempre apreciei um Cinema intenso, profundo e consistente – na verdade, não apenas um Cinema assim, mas qualquer forma narrativa que me dissesse algo tão forte quanto. E ver todo essa força sendo enfraquecida pela obrigatoriedade de explosões pirotécnicas espetaculares, gags caindo de pára-quedas e cenas românticas praticamente burocráticas é algo que vai além de conhecer ou não um personagem.
Isto me remete a uma outra experiência de adaptação recente, “A Fantástica Fábrica de Chocolate” (“Charlie & the Chocolate Factory”), de Tim Burton, roteiro de John August. Na primeira adaptação do livro de Roald Dahl (que então assinava também o roteiro), “Willy Wonka & the Chocolate Factory” (1971), dirigida por Mel Stuart, tínhamos uma perspectiva quase bizarra de um universo infantil improvável. Conhecendo a perspectiva autoral do próprio Burton, seria natural esperar que um remake do filme fosse dirigido com ele. Novamente, no entanto, houve uma série de concessões para tornar o filme um pouco mais “família”, politicamente correto mesmo. Não acho que isso chegue a prejudicar o trabalho, porém me peguei meio aborrecido às vezes. Pode ser só minha chatice mesmo, mas novamente cheguei perto de mais uma expectativa frustrada.
E quanto àquela pergunta de dois parágrafos atrás, bem, creio não ter a resposta. As expectativas existem, inevitavelmente existem. Não há como escapar delas, em qualquer instância, muito menos quando nos envolvemos um pouco mais pessoalmente nas coisas. Há talvez como pegar mais leve, reconhecer que estas grandes esperanças que nutrimos podem resultar em grandes frustrações ou pequenas boas surpresas, sempre nos sujeitando ao que o destino, ou o acaso, nos propõe.
Na dúvida, sempre tenha uma pastilha de magnésia bisurada à mão – ou qualquer outra forma de alívio imediato.
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