02 janeiro 2006

Santo Sacrifício

Este é mais um artigo bem pessoal. Quem estiver a fim de verdades mais absolutas, melhor parar por aqui mesmo. Isto porque há certos tipos de temas, eu acredito, expressos por pontos-de-vista específicos, que só podem ser expostos de forma pessoal. É como cantar a própria aldeia para ser universal, ou expressar-se de uma maneira tão sincera que é capaz de fazer com que alguém completamente estranho se identifique e se envolva numa obra sua. E no mais, bem, a coluna é minha, sou eu que estou escrevendo, e dane-se, vai ser assim mesmo.

Bom, há pouco mais de um mês, concluímos as filmagens do meu mais recente projeto cinematográfico, A vida é curta, que conta à história de um cara que precisa ir a uma cidade reconquistar o amor de sua vida, mas só tem quinze minutos pra isso. Estamos num ambiente virtual de fácil acesso à informação, então, quem quiser saber mais sobre o projeto, pode procurar por aí. O pressuposto que se deve saber para este texto é que se trata de um projeto ambicioso, não porque queremos dizer o quanto somos bons ou ruins, mas porque a história pede isso.

Delimitadas as limitações de sempre, partimos para a aventura que é rodar um filme. Tínhamos um grande desafio pela frente: rodar cerca de 183 planos em apenas 5 dias, em 4 locações diferentes. Numa delas, tínhamos que desmontar todo o cenário de manhã cedinho e remontar no período da tarde para poder filmar a noite. Aliás, era a locação mais complicada, com cerca de 50 figurantes, todos vestidos e maquiados com referências da década de 50. Pra quem não está acostumado a dados de produção, posso garantir que são condições de trabalho extremamente difíceis, mesmo para uma equipe experiente. Mas acreditávamos que podíamos dar conta.

A realidade se apresentou bem diferente. Esbarramos nos eternos contratempos comuns a pequenas e grandes produções: os imprevistos. Terminamos tendo que repensar muita coisa, cortar planos, encontrar de improviso outras soluções, enfim, adaptar as idéias às reais condições da realização. Não foi um processo fácil, é possível imaginar. Terminamos deixando de rodar uns 20 planos. Se pararmos pra pensar e colocarmos na média das produções, até que não foi tanto assim. No entanto, dois desses planos eram fundamentais não para satisfazer meu estilo de muitos planos, mas para a história em si. Foi aí que pegou...

Era o último dia de filmagem, uma exterior em meio a um canavial na Zona da Mata Norte do Estado de Pernambuco. Não veio a chuva, que é uma das maiores casualidades de uma filmagem externa, mas o dia estava bem nublado – o que terminou deixando a luz irregular e fazendo com que perdêssemos muitos minutos preciosos. Priorizamos, como sempre, contar a história, e nos concentramos em garantir os diálogos. No entanto, um plano fundamental ainda deveria ser feito: o protagonista correndo para pegar um ônibus. Bem no limite da luz – o sol já prestes a se pôr – preparamos a cena, posicionamos o ônibus no lugar e estava tudo pronto para rodar. Quando ativamos a cena, no entanto, o ônibus, de antigo que era, deu de não pegar. Justo naquela hora, justo no limite, justo numa ladeira, que nem pra empurrar dava. Tentamos ainda por angustiantes 20 minutos garantir o último plano fundamental do filme, mas todos os esforços foram em vão: o veículo só sairia dali rebocado. Eu, desolado, tive que reconhecer que não havia mais nada a fazer.

Meu assistente ainda gravou algumas locuções que poderiam ser úteis, mas eu conhecia bem o roteiro, sabia que tudo aquilo era inútil àquela hora. Isolei-me por alguns instantes, contemplando o fim do pôr-do-sol no meio da estrada do canavial, o vento passando suave pelas palhas secas, produzindo um ruído monódico. E nessas horas que você fica só (horas freqüentemente necessárias), tudo vem à cabeça. Quanto azar tivemos que enfrentar nesta produção, pensei. Azar? Não sei. A impressão que tenho é que o próprio Cinema estava me dando uma lição: não importa toda a preparação técnica que se tem, todo o domínio de ferramentas, todo o planejamento que dê a sensação de controle; no fim das contas, o Cinema, a obra que está sendo feita, é maior que tudo isso. Reconhecer isto é o primeiro passo.

O segundo passo é saber que uma produção não é uma guerra contra a obra, contra a idéia da obra. Tudo deve culminar para que a idéia se materialize da melhor forma. É só que a idéia deve ser encarada com afinco e humildade, um filme está sendo feito, afinal de contas, e você tem um papel nisso tudo. Se não é possível fazer tudo de acordo com o planejado e a idéia pede isso, é hora de refazer os planos. Ver de onde tirar verba para mais uma diária (isto me aconteceu pela primeira vez na vida, aliás), verificar os planos que faltam e planejá-los novamente se for necessário e viável. Mas, sobretudo, ter a certeza de que o filme vai acontecer. É maior que nós, maior do que as virtudes e conquistas da produção, porém também maior do que as dificuldades e contratempos.

O que nos leva ao terceiro passo, que aí depende da uma certa crença: considerar que o Cinema é (ou talvez seja), como qualquer forma de Arte, uma entidade que se cria do espírito humano, que toma uma forma e uma autonomia própria. E aí vira uma espécie de Deus (ou uma analogia à divindade, como preferirem), que pede submissão, devoção e sacrifício, não para ser exaltado, mas para que suas obras sejam feitas e toda a humanidade, profundamente amada por ele, possa partilhar de sua natureza. Quantas vezes eu, enquanto espectador, pude desfrutar dessa natureza? Quantas vezes não senti o impulso de me curvar em reverência diante de uma tela (um altar) antes de deixar uma sala (um templo)? E quantas vezes como realizador não me senti pequeno, indigno e incapaz de despertar isso? Mas nem isso importa.

Durante a oficina de atuação anterior ao filme, eu repetia sempre aos atores: esqueçam o ego e submetam-se à obra – servimos a uma causa maior. Qualquer atributo que nos é confiado num set de filmagem deve ser encarado como uma função, não como um privilégio. O que deve ficar depois que o filme estiver pronto não são as atuações extraordinárias deste ou daquele ator, não é a consistência do roteiro, não é a excelência da fotografia ou o dinamismo e adequação da montagem; nem mesmo o cuidado da direção de arte ou a riqueza criativa dos figurinos; a música não deve chamar tanta atenção, e os efeitos visuais não precisam ser fantásticos; por fim, os planos criados não devem ser maiores do que a história. O que deve ficar é o filme, é o sentimento que uma pessoa completamente estranha vai ver nascendo em si após tê-lo visto. É ali que o processo artístico se completa; é ali que se ligam intimamente autores, obras e espectadores; é ali que se faz mágica.

E dessa mágica, nós somos meros instrumentos.

(publicado originalmente no Webzine Vitrolaz, em fevereiro de 2005)
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