Santo Sacrifício
Este é mais um artigo bem pessoal. Quem estiver a fim de verdades mais absolutas, melhor parar por aqui mesmo. Isto porque há certos tipos de temas, eu acredito, expressos por pontos-de-vista específicos, que só podem ser expostos de forma pessoal. É como cantar a própria aldeia para ser universal, ou expressar-se de uma maneira tão sincera que é capaz de fazer com que alguém completamente estranho se identifique e se envolva numa obra sua. E no mais, bem, a coluna é minha, sou eu que estou escrevendo, e dane-se, vai ser assim mesmo.
Bom, há pouco mais de um mês, concluímos as filmagens do meu mais recente projeto cinematográfico, A vida é curta, que conta à história de um cara que precisa ir a uma cidade reconquistar o amor de sua vida, mas só tem quinze minutos pra isso. Estamos num ambiente virtual de fácil acesso à informação, então, quem quiser saber mais sobre o projeto, pode procurar por aí. O pressuposto que se deve saber para este texto é que se trata de um projeto ambicioso, não porque queremos dizer o quanto somos bons ou ruins, mas porque a história pede isso.
Delimitadas as limitações de sempre, partimos para a aventura que é rodar um filme. Tínhamos um grande desafio pela frente: rodar cerca de 183 planos em apenas 5 dias, em 4 locações diferentes. Numa delas, tínhamos que desmontar todo o cenário de manhã cedinho e remontar no período da tarde para poder filmar a noite. Aliás, era a locação mais complicada, com cerca de 50 figurantes, todos vestidos e maquiados com referências da década de 50. Pra quem não está acostumado a dados de produção, posso garantir que são condições de trabalho extremamente difíceis, mesmo para uma equipe experiente. Mas acreditávamos que podíamos dar conta.
A realidade se apresentou bem diferente. Esbarramos nos eternos contratempos comuns a pequenas e grandes produções: os imprevistos. Terminamos tendo que repensar muita coisa, cortar planos, encontrar de improviso outras soluções, enfim, adaptar as idéias às reais condições da realização. Não foi um processo fácil, é possível imaginar. Terminamos deixando de rodar uns 20 planos. Se pararmos pra pensar e colocarmos na média das produções, até que não foi tanto assim. No entanto, dois desses planos eram fundamentais não para satisfazer meu estilo de muitos planos, mas para a história em si. Foi aí que pegou...
Era o último dia de filmagem, uma exterior em meio a um canavial na Zona da Mata Norte do Estado de Pernambuco. Não veio a chuva, que é uma das maiores casualidades de uma filmagem externa, mas o dia estava bem nublado – o que terminou deixando a luz irregular e fazendo com que perdêssemos muitos minutos preciosos. Priorizamos, como sempre, contar a história, e nos concentramos em garantir os diálogos. No entanto, um plano fundamental ainda deveria ser feito: o protagonista correndo para pegar um ônibus. Bem no limite da luz – o sol já prestes a se pôr – preparamos a cena, posicionamos o ônibus no lugar e estava tudo pronto para rodar. Quando ativamos a cena, no entanto, o ônibus, de antigo que era, deu de não pegar. Justo naquela hora, justo no limite, justo numa ladeira, que nem pra empurrar dava. Tentamos ainda por angustiantes 20 minutos garantir o último plano fundamental do filme, mas todos os esforços foram em vão: o veículo só sairia dali rebocado. Eu, desolado, tive que reconhecer que não havia mais nada a fazer.
Meu assistente ainda gravou algumas locuções que poderiam ser úteis, mas eu conhecia bem o roteiro, sabia que tudo aquilo era inútil àquela hora. Isolei-me por alguns instantes, contemplando o fim do pôr-do-sol no meio da estrada do canavial, o vento passando suave pelas palhas secas, produzindo um ruído monódico. E nessas horas que você fica só (horas freqüentemente necessárias), tudo vem à cabeça. Quanto azar tivemos que enfrentar nesta produção, pensei. Azar? Não sei. A impressão que tenho é que o próprio Cinema estava me dando uma lição: não importa toda a preparação técnica que se tem, todo o domínio de ferramentas, todo o planejamento que dê a sensação de controle; no fim das contas, o Cinema, a obra que está sendo feita, é maior que tudo isso. Reconhecer isto é o primeiro passo.
O segundo passo é saber que uma produção não é uma guerra contra a obra, contra a idéia da obra. Tudo deve culminar para que a idéia se materialize da melhor forma. É só que a idéia deve ser encarada com afinco e humildade, um filme está sendo feito, afinal de contas, e você tem um papel nisso tudo. Se não é possível fazer tudo de acordo com o planejado e a idéia pede isso, é hora de refazer os planos. Ver de onde tirar verba para mais uma diária (isto me aconteceu pela primeira vez na vida, aliás), verificar os planos que faltam e planejá-los novamente se for necessário e viável. Mas, sobretudo, ter a certeza de que o filme vai acontecer. É maior que nós, maior do que as virtudes e conquistas da produção, porém também maior do que as dificuldades e contratempos.
O que nos leva ao terceiro passo, que aí depende da uma certa crença: considerar que o Cinema é (ou talvez seja), como qualquer forma de Arte, uma entidade que se cria do espírito humano, que toma uma forma e uma autonomia própria. E aí vira uma espécie de Deus (ou uma analogia à divindade, como preferirem), que pede submissão, devoção e sacrifício, não para ser exaltado, mas para que suas obras sejam feitas e toda a humanidade, profundamente amada por ele, possa partilhar de sua natureza. Quantas vezes eu, enquanto espectador, pude desfrutar dessa natureza? Quantas vezes não senti o impulso de me curvar em reverência diante de uma tela (um altar) antes de deixar uma sala (um templo)? E quantas vezes como realizador não me senti pequeno, indigno e incapaz de despertar isso? Mas nem isso importa.
Durante a oficina de atuação anterior ao filme, eu repetia sempre aos atores: esqueçam o ego e submetam-se à obra – servimos a uma causa maior. Qualquer atributo que nos é confiado num set de filmagem deve ser encarado como uma função, não como um privilégio. O que deve ficar depois que o filme estiver pronto não são as atuações extraordinárias deste ou daquele ator, não é a consistência do roteiro, não é a excelência da fotografia ou o dinamismo e adequação da montagem; nem mesmo o cuidado da direção de arte ou a riqueza criativa dos figurinos; a música não deve chamar tanta atenção, e os efeitos visuais não precisam ser fantásticos; por fim, os planos criados não devem ser maiores do que a história. O que deve ficar é o filme, é o sentimento que uma pessoa completamente estranha vai ver nascendo em si após tê-lo visto. É ali que o processo artístico se completa; é ali que se ligam intimamente autores, obras e espectadores; é ali que se faz mágica.
E dessa mágica, nós somos meros instrumentos.
(publicado originalmente no Webzine Vitrolaz, em fevereiro de 2005)
Bom, há pouco mais de um mês, concluímos as filmagens do meu mais recente projeto cinematográfico, A vida é curta, que conta à história de um cara que precisa ir a uma cidade reconquistar o amor de sua vida, mas só tem quinze minutos pra isso. Estamos num ambiente virtual de fácil acesso à informação, então, quem quiser saber mais sobre o projeto, pode procurar por aí. O pressuposto que se deve saber para este texto é que se trata de um projeto ambicioso, não porque queremos dizer o quanto somos bons ou ruins, mas porque a história pede isso.
Delimitadas as limitações de sempre, partimos para a aventura que é rodar um filme. Tínhamos um grande desafio pela frente: rodar cerca de 183 planos em apenas 5 dias, em 4 locações diferentes. Numa delas, tínhamos que desmontar todo o cenário de manhã cedinho e remontar no período da tarde para poder filmar a noite. Aliás, era a locação mais complicada, com cerca de 50 figurantes, todos vestidos e maquiados com referências da década de 50. Pra quem não está acostumado a dados de produção, posso garantir que são condições de trabalho extremamente difíceis, mesmo para uma equipe experiente. Mas acreditávamos que podíamos dar conta.
A realidade se apresentou bem diferente. Esbarramos nos eternos contratempos comuns a pequenas e grandes produções: os imprevistos. Terminamos tendo que repensar muita coisa, cortar planos, encontrar de improviso outras soluções, enfim, adaptar as idéias às reais condições da realização. Não foi um processo fácil, é possível imaginar. Terminamos deixando de rodar uns 20 planos. Se pararmos pra pensar e colocarmos na média das produções, até que não foi tanto assim. No entanto, dois desses planos eram fundamentais não para satisfazer meu estilo de muitos planos, mas para a história em si. Foi aí que pegou...
Era o último dia de filmagem, uma exterior em meio a um canavial na Zona da Mata Norte do Estado de Pernambuco. Não veio a chuva, que é uma das maiores casualidades de uma filmagem externa, mas o dia estava bem nublado – o que terminou deixando a luz irregular e fazendo com que perdêssemos muitos minutos preciosos. Priorizamos, como sempre, contar a história, e nos concentramos em garantir os diálogos. No entanto, um plano fundamental ainda deveria ser feito: o protagonista correndo para pegar um ônibus. Bem no limite da luz – o sol já prestes a se pôr – preparamos a cena, posicionamos o ônibus no lugar e estava tudo pronto para rodar. Quando ativamos a cena, no entanto, o ônibus, de antigo que era, deu de não pegar. Justo naquela hora, justo no limite, justo numa ladeira, que nem pra empurrar dava. Tentamos ainda por angustiantes 20 minutos garantir o último plano fundamental do filme, mas todos os esforços foram em vão: o veículo só sairia dali rebocado. Eu, desolado, tive que reconhecer que não havia mais nada a fazer.
Meu assistente ainda gravou algumas locuções que poderiam ser úteis, mas eu conhecia bem o roteiro, sabia que tudo aquilo era inútil àquela hora. Isolei-me por alguns instantes, contemplando o fim do pôr-do-sol no meio da estrada do canavial, o vento passando suave pelas palhas secas, produzindo um ruído monódico. E nessas horas que você fica só (horas freqüentemente necessárias), tudo vem à cabeça. Quanto azar tivemos que enfrentar nesta produção, pensei. Azar? Não sei. A impressão que tenho é que o próprio Cinema estava me dando uma lição: não importa toda a preparação técnica que se tem, todo o domínio de ferramentas, todo o planejamento que dê a sensação de controle; no fim das contas, o Cinema, a obra que está sendo feita, é maior que tudo isso. Reconhecer isto é o primeiro passo.
O segundo passo é saber que uma produção não é uma guerra contra a obra, contra a idéia da obra. Tudo deve culminar para que a idéia se materialize da melhor forma. É só que a idéia deve ser encarada com afinco e humildade, um filme está sendo feito, afinal de contas, e você tem um papel nisso tudo. Se não é possível fazer tudo de acordo com o planejado e a idéia pede isso, é hora de refazer os planos. Ver de onde tirar verba para mais uma diária (isto me aconteceu pela primeira vez na vida, aliás), verificar os planos que faltam e planejá-los novamente se for necessário e viável. Mas, sobretudo, ter a certeza de que o filme vai acontecer. É maior que nós, maior do que as virtudes e conquistas da produção, porém também maior do que as dificuldades e contratempos.
O que nos leva ao terceiro passo, que aí depende da uma certa crença: considerar que o Cinema é (ou talvez seja), como qualquer forma de Arte, uma entidade que se cria do espírito humano, que toma uma forma e uma autonomia própria. E aí vira uma espécie de Deus (ou uma analogia à divindade, como preferirem), que pede submissão, devoção e sacrifício, não para ser exaltado, mas para que suas obras sejam feitas e toda a humanidade, profundamente amada por ele, possa partilhar de sua natureza. Quantas vezes eu, enquanto espectador, pude desfrutar dessa natureza? Quantas vezes não senti o impulso de me curvar em reverência diante de uma tela (um altar) antes de deixar uma sala (um templo)? E quantas vezes como realizador não me senti pequeno, indigno e incapaz de despertar isso? Mas nem isso importa.
Durante a oficina de atuação anterior ao filme, eu repetia sempre aos atores: esqueçam o ego e submetam-se à obra – servimos a uma causa maior. Qualquer atributo que nos é confiado num set de filmagem deve ser encarado como uma função, não como um privilégio. O que deve ficar depois que o filme estiver pronto não são as atuações extraordinárias deste ou daquele ator, não é a consistência do roteiro, não é a excelência da fotografia ou o dinamismo e adequação da montagem; nem mesmo o cuidado da direção de arte ou a riqueza criativa dos figurinos; a música não deve chamar tanta atenção, e os efeitos visuais não precisam ser fantásticos; por fim, os planos criados não devem ser maiores do que a história. O que deve ficar é o filme, é o sentimento que uma pessoa completamente estranha vai ver nascendo em si após tê-lo visto. É ali que o processo artístico se completa; é ali que se ligam intimamente autores, obras e espectadores; é ali que se faz mágica.
E dessa mágica, nós somos meros instrumentos.
(publicado originalmente no Webzine Vitrolaz, em fevereiro de 2005)
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