02 janeiro 2006

Cineastas não gostam de água

Não faz muito tempo, numa outra noite de sábado, saí bem cedo de uma festa. Não que não estivesse boa – muito pelo contrário. Era só que, bom, eu tinha outra coisa a fazer. Um amigo meu estava rodando mais um de seus curtas e me convidou a participar da gravação. Era um esquema meio “guerrilheiro”, quatro caras com duas câmeras digitais encarando a noite, chegando nos lugares e filmando as cenas, sem estrutura de produção, autorizações prévias ou planejamentos mais complexos. Puro instinto artístico, e só.

Começamos numa loja de conveniência e fomos bater na praia para rodar a última cena da noite. No filme, o ator deveria entrar na água e dizer seu texto (não vou revelar mais detalhes – o filme será lançado em breve). Estávamos tão envolvidos no trabalho que não pudemos perceber quão estranho eram cinco marmanjos com apetrechos fotográficos numa praia em pleno amanhecer de domingo. Eu mesmo só fui notar isto quando, para exercer minha função, tive que entrar no mar até o joelho – não tive tempo de tirar as botas e nem arregaçar minhas calças.

Bom, pra quem não me conhece, eu não sou exatamente um cara que vai à praia sempre (na verdade, isso deve se resumir a, no máximo, duas ou três vezes por ano, infelizmente). E estar ali com trajes evidentemente inapropriados seria algo no mínimo incômodo. Quando nos vimos obrigados a entrar na água junto com o ator, comentei com meu amigo (igualmente incomodado): “cineastas não gostam de água”. Isto pode ser aplicado a dois workaholics noctívagos como nós, mas na verdade pode ser considerado também uma grande metáfora para a realização cinematográfica.

Segundo uma produtora amiga minha, os americanos elaboraram um ranking de graus de dificuldades de filmagem, e cenas de água estão em segundo lugar, só perdendo para as de selva (a título de curiosidade, são seguidas de perto por seqüências com crianças e bichos, nesta ordem). Realmente, se a gente for pensar bem, é complicado mobilizar uma equipe com atores, câmeras, técnicos, equipamentos de iluminação e maquinaria, som, objetos de cena, etc., para um lugar onde o chão se move, as coisas se molham e puxar uma extensão para fiações elétricas é no mínimo arriscado.

As filmagens de “Tubarão”, de Steven Spielberg, por exemplo, deveriam ter durado 3 meses. Mas foi somente depois de 7 que equipe deu conta de todas as cenas. Um dos planos teve que ser filmado na própria piscina do diretor, pois o produtor não queria gastar grana e neurônios para realiza-la no fundo do mar.

“Waterworld”, de Kevin Reynolds, teve o orçamento mais caro da história do Cinema – o que não foi revertido nem em bilheteria e muito menos em satisfação da crítica. O filme foi todo feito em cenários construídos sobre a água e eu arriscaria um palpite que uma parte significativa do dinheiro foi gasta em tentar adequar as seqüências a esta realidade de produção. Faltou pagar melhor o roteirista, me parece.

Em “Náufrago” (não o longa-metragem de Robert Zemeckis, mas um curta-metragem cearense anterior ao filme americano), de Amílcar Claro, como qualquer filme cuja trama é ambientada em alto-mar, a equipe tinha que esperar horas num barco ancorado até o horizonte ficar completamente limpo de outros barcos ou outros sinais de civilização. Quando finalmente o mar estava sem ninguém, a luz não estava boa, e quando a luz finalmente ficava boa, aparecia um pontinho navegando lá ao longe: mais um barco indesejável.

Há ainda um sem número de curiosidades sobre filmagens feitas na água, mas, enfim, o que eu quero dizer vocês já entenderam: filmar na água é fogo.

Mas o que isso tudo me faz pensar é que, naquela madrugada de domingo, a gente não estava nem aí para a água. Tudo o que interessava era filmar a cena, naquela hora, com aquela luz, com aquele clima, com aquela sensação de estar fazendo uma coisa que vale muito mais do que todo o seu desconforto, do que todos os seus hábitos pouco saudáveis, do que toda a sua história de aversão às coisas do mar; algo que transcende você: um filme.

Quando se tem algo muito importante a dizer, não importam os meios. Muito menos os obstáculos, e as outras coisas da vida que eventualmente nos desviam do nosso caminho. No fim de tudo, ter a chance de se expressar e compartilhar sua essência com outras pessoas é o que realmente importa. As dificuldades só dão um sabor especial ao processo.

Depois de acabamos, saímos exaustos, molhados e imundos de areia. Minhas botas estavam pesadas e encharcadas e minhas meias cheias de areia e minhas calças geladas até a altura das coxas e eu ainda precisava dirigir até em casa. Mas não podia esconder um sorriso que começava bem dentro e se abria invencível do lado de fora.

Agradecimentos a Andrezza de Faria pelas informações e a Kleber Mendonça Filho pelo convite à bela experiência.
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