Pecando pelo excesso
O ano é 1998. No meio de uma sala escura, um homem ingênuo e cheio de expectativas se entrega totalitariamente ao impressionante conjunto de imagens que passa diante de seus olhos, ocupando quase que completamente a parede à sua frente. Ao seu redor, pessoas parecidas com ele, algumas bem familiares, cercadas por potentes monitores de som, regulados para distribuir informações suaves e sísmicas de forma perfeitamente harmônica por toda a sala, atribuindo-lhes uma tridimensionalidade jamais vista – ou melhor, ouvida.
Bom, pra encurtar a história, o homem ingênuo era eu, a sala escura era um multiplex e o espetáculo artístico-técnico em questão era um certo filme de Steven Spielberg chamado “O resgate do Soldado Ryan”. No meio daquelas explosões – pirotécnicas e dramáticas – eu esqueci toda a parte inicial (com exceção da bandeira americana contra o sol que me deu a impressão de estar vendo-a num negativo fotográfico), a do presente, em que o velho Ryan procura pelo túmulo de seu capitão. E aí me envolvi pra valer na história, chegando perto do êxtase quando o Tom Hanks lançou um último olhar ao Matt Damon e reuniu as últimas forças que lhe restavam para balbuciar um “Deserve it...” (algo como “faça por merecer”). Aí, de repente, um efeito “morphe” transforma o jovem Ryan no velho Ryan, e este diz com todas as letras, levando cerca de 30 segundos, tudo o que eu tinha pensado em apenas um instante, logo após a fala do personagem moribundo.
Isto foi o bastante pra me fazer sair muito puto da sala. Só fui me acalmar quando me convenci de que o filme começava no desembarque da Normandia e terminava logo após aquela frase, com as tropas americanas invadindo o pequeno vilarejo acabando com os últimos resquícios da resistência nazista. Mas depois fui pensar um pouco no assunto. Spielberg tem essa mania, de nos proporcionar um delicioso show cinematográfico, unindo como poucos possibilidades técnicas com fluência narrativa, para depois entregar o conceito – aquele ao qual nós deveríamos chegar – mastigado numa bandeja pra gente. Eca!
Transportando isso para termos mais gerais – e considerando que o diretor de “ET”, “Tubarão” e “Contatos Imediatos do Terceiro Grau” é, sem dúvida, um dos mais geniais diretores americanos –, creio que isto é um reflexo do “American way” de ver as coisas. Pela produção artística e jornalística a que temos acesso, parece mesmo que tudo tem que vir muito bem explicado, pragmaticamente definido, como houvesse uma incapacidade geral de abstrair, de chegar às suas próprias conclusões. O fim deste e de outro filme de destaque de Spielberg, “A lista de Schindler”, explica exatamente o que a platéia já percebeu, ou poderia perceber caso o filme simplesmente acabasse. Redundância, para dizer o mínimo. Mau gosto, para dizer o máximo.
Já me explico. Umberto Eco caracteriza o mau gosto como algum elemento estético que força a atenção do expectador/leitor/apreciador para um aspecto específico da obra. Ele toma um vestido feminino para ilustrar seu ponto-de-vista: uma mulher que aparece com um decote exagerado, numa festa em que todos estão vestidos recatadamente, força atenção para os seus seios, causando constrangimento para uns e deleite para outros.
O público médio talvez não identifique esta causa, mas certamente definiria o vestido como de mau gosto. Não porque o decote em si é feio, mas porque está fora do contexto daquela festa em particular. De outro modo, um outro modelo de vestido, mesmo que ressaltasse as belas formas físicas da mulher, porém sem forçar a atenção para um aspecto específico, permitindo que ela fosse lida em sua totalidade (inclusive revelando sua própria personalidade), aqui estaríamos diante de uma obra definida esteticamente como bela, que chamaria a atenção por sua integridade e por nos permitir uma leitura livre, segundo as características de cada um.
Acho interessante esta percepção do mau gosto, pois tem a ver com a função estética de uma obra de arte aberta, que convida o espectador a fazer parte do processo artístico, dando à leitura da obra uma importância tão grande quanto a sua produção. Eco sugeriu isto por volta de 1964, no seu antológico “Apocalípticos e integrados”. De lá pra cá, muita coisa mudou, inclusive em termos estéticos, padrões de comportamento e tendências de moda. Talvez o exemplo tenha até caducado (muito embora ache que a “dívida histórica” do homem para com a mulher se reflita também nesta exploração do corpo feminino), mas acredito que o princípio possa continuar o mesmo – o excesso de exposição de um elemento ou aspecto específico, mudando-se apenas a contextualização.
E, analisando um contexto narrativo dentro deste princípio, o excesso residiria justamente na redundância, na ênfase que um autor dá a um aspecto de sua própria interpretação, subestimando, mesmo que involuntariamente, o tempo de leitura de cada espectador, sua capacidade crítica de chegar às suas próprias conclusões, mesmo que sejam diversas do que se pensou.
É claro que há obras que se valem do excesso para existir. A alta “densidade demográfica” de notas musicais num solo de John Coltrane me vem à cabeça agora. Só que aí se trata de um outro contexto estabelecido, onde a proliferação de notas faz parte do cenário. No caso de uma obra narrativa, a história pode até ser guiada dentro de uma linha estética, mas o cuidado está em deixar o espectador seguí-la do seu jeito.
Voltando ao nosso exemplo, continuo considerando Spielberg um dos mais brilhantes autores do cinema contemporâneo. Mas ele está inserido num contexto em que a narrativa é subestimada. Dentro destes deslizes de redundância – ninguém é perfeito –, no entanto, ele consegue fazer-nos atingir momentos de puro deleite, o que o coloca dentro de um outro nível de artista, cujo mau gosto se restringe a momentos bem específicos, e não à sua essência. Afinal, aqui não se trata apenas de redundância narrativa, mas também de falta de cuidado estético. Spielberg peca apenas pelos seus excessos eventuais.
Dizem que gosto não se discute – se lamenta. Não sei se dá pra colocar nesta forma, mas se estivermos dispostos a reexaminar nossos preconceitos e absorver uma obra de uma maneira diferente, podemos crescer muito na nossa leitura artística, e aumentar nossas possibilidades de prazer estético.
Mas a obra, é claro, tem que permitir isto.
Bom, pra encurtar a história, o homem ingênuo era eu, a sala escura era um multiplex e o espetáculo artístico-técnico em questão era um certo filme de Steven Spielberg chamado “O resgate do Soldado Ryan”. No meio daquelas explosões – pirotécnicas e dramáticas – eu esqueci toda a parte inicial (com exceção da bandeira americana contra o sol que me deu a impressão de estar vendo-a num negativo fotográfico), a do presente, em que o velho Ryan procura pelo túmulo de seu capitão. E aí me envolvi pra valer na história, chegando perto do êxtase quando o Tom Hanks lançou um último olhar ao Matt Damon e reuniu as últimas forças que lhe restavam para balbuciar um “Deserve it...” (algo como “faça por merecer”). Aí, de repente, um efeito “morphe” transforma o jovem Ryan no velho Ryan, e este diz com todas as letras, levando cerca de 30 segundos, tudo o que eu tinha pensado em apenas um instante, logo após a fala do personagem moribundo.
Isto foi o bastante pra me fazer sair muito puto da sala. Só fui me acalmar quando me convenci de que o filme começava no desembarque da Normandia e terminava logo após aquela frase, com as tropas americanas invadindo o pequeno vilarejo acabando com os últimos resquícios da resistência nazista. Mas depois fui pensar um pouco no assunto. Spielberg tem essa mania, de nos proporcionar um delicioso show cinematográfico, unindo como poucos possibilidades técnicas com fluência narrativa, para depois entregar o conceito – aquele ao qual nós deveríamos chegar – mastigado numa bandeja pra gente. Eca!
Transportando isso para termos mais gerais – e considerando que o diretor de “ET”, “Tubarão” e “Contatos Imediatos do Terceiro Grau” é, sem dúvida, um dos mais geniais diretores americanos –, creio que isto é um reflexo do “American way” de ver as coisas. Pela produção artística e jornalística a que temos acesso, parece mesmo que tudo tem que vir muito bem explicado, pragmaticamente definido, como houvesse uma incapacidade geral de abstrair, de chegar às suas próprias conclusões. O fim deste e de outro filme de destaque de Spielberg, “A lista de Schindler”, explica exatamente o que a platéia já percebeu, ou poderia perceber caso o filme simplesmente acabasse. Redundância, para dizer o mínimo. Mau gosto, para dizer o máximo.
Já me explico. Umberto Eco caracteriza o mau gosto como algum elemento estético que força a atenção do expectador/leitor/apreciador para um aspecto específico da obra. Ele toma um vestido feminino para ilustrar seu ponto-de-vista: uma mulher que aparece com um decote exagerado, numa festa em que todos estão vestidos recatadamente, força atenção para os seus seios, causando constrangimento para uns e deleite para outros.
O público médio talvez não identifique esta causa, mas certamente definiria o vestido como de mau gosto. Não porque o decote em si é feio, mas porque está fora do contexto daquela festa em particular. De outro modo, um outro modelo de vestido, mesmo que ressaltasse as belas formas físicas da mulher, porém sem forçar a atenção para um aspecto específico, permitindo que ela fosse lida em sua totalidade (inclusive revelando sua própria personalidade), aqui estaríamos diante de uma obra definida esteticamente como bela, que chamaria a atenção por sua integridade e por nos permitir uma leitura livre, segundo as características de cada um.
Acho interessante esta percepção do mau gosto, pois tem a ver com a função estética de uma obra de arte aberta, que convida o espectador a fazer parte do processo artístico, dando à leitura da obra uma importância tão grande quanto a sua produção. Eco sugeriu isto por volta de 1964, no seu antológico “Apocalípticos e integrados”. De lá pra cá, muita coisa mudou, inclusive em termos estéticos, padrões de comportamento e tendências de moda. Talvez o exemplo tenha até caducado (muito embora ache que a “dívida histórica” do homem para com a mulher se reflita também nesta exploração do corpo feminino), mas acredito que o princípio possa continuar o mesmo – o excesso de exposição de um elemento ou aspecto específico, mudando-se apenas a contextualização.
E, analisando um contexto narrativo dentro deste princípio, o excesso residiria justamente na redundância, na ênfase que um autor dá a um aspecto de sua própria interpretação, subestimando, mesmo que involuntariamente, o tempo de leitura de cada espectador, sua capacidade crítica de chegar às suas próprias conclusões, mesmo que sejam diversas do que se pensou.
É claro que há obras que se valem do excesso para existir. A alta “densidade demográfica” de notas musicais num solo de John Coltrane me vem à cabeça agora. Só que aí se trata de um outro contexto estabelecido, onde a proliferação de notas faz parte do cenário. No caso de uma obra narrativa, a história pode até ser guiada dentro de uma linha estética, mas o cuidado está em deixar o espectador seguí-la do seu jeito.
Voltando ao nosso exemplo, continuo considerando Spielberg um dos mais brilhantes autores do cinema contemporâneo. Mas ele está inserido num contexto em que a narrativa é subestimada. Dentro destes deslizes de redundância – ninguém é perfeito –, no entanto, ele consegue fazer-nos atingir momentos de puro deleite, o que o coloca dentro de um outro nível de artista, cujo mau gosto se restringe a momentos bem específicos, e não à sua essência. Afinal, aqui não se trata apenas de redundância narrativa, mas também de falta de cuidado estético. Spielberg peca apenas pelos seus excessos eventuais.
Dizem que gosto não se discute – se lamenta. Não sei se dá pra colocar nesta forma, mas se estivermos dispostos a reexaminar nossos preconceitos e absorver uma obra de uma maneira diferente, podemos crescer muito na nossa leitura artística, e aumentar nossas possibilidades de prazer estético.
Mas a obra, é claro, tem que permitir isto.
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