02 janeiro 2006

O imortal e o efêmero

Anteontem fui assistir a uma ótima peça no Teatro Ipanema, no Rio de Janeiro, aproveitando a rara folga do fim-de-Semana-Santa: “Homem-Objeto”, espetáculo de João Falcão a partir da obra de Luís Fernando Veríssimo. Foi uma experiência ótima — os atores estavam maravilhosos, a encenação era complexa e acessível ao mesmo tempo, e o texto era simplesmente extraordinário. Lembro-me particularmente da cena final, em que os atores, diante de uma luz mínima que os deixava praticamente na penumbra, iam vestindo peças de figurino fosforecente, aos poucos dando forma aos seus próprios corpos, construindo a sua existência à medida que construiam o contexto através do texto. Um desses momentos que certamente você guarda por muito tempo, porque lhe é significativo não apenas o que é dito, mas a forma como é dito. Já dissemos, o sabor (a forma) é importante.

Na saída, encontrei alguns amigos, e ficamos por alguns minutos conversando sobre o que tínhamos acabado de ver. Todos tínhamos adorado a peça, e estávamos evidentemente felizes com o que a peça nos tinha proporcionado. A um certo ponto, alguém (e isto provavelmente expressaria o desejo de outra pessoas) comentou algo do tipo: “Cara, isso tem que virar um filme”. Como cineasta, seria natural eu simplesmente achar a idéia boa. Mas minha cabeça terminou se voltando pra uma outra reflexão. Bom, eu tinha acabado de ver um teatro de alta qualidade – não digo nem qualidade técnica, mas expressiva mesmo. Aquela peça me disse muito, em conteúdo, forma e atmosfera. E dentro de elementos bem característicos da linguagem teatral: cenas concebidas tridimensionalmente, apoiadas diretamente na reação do público, desenrolando-se em conjunto com o texto.

E aí, fiquei pensando, será que conseguiríamos alcançar aquele potencial expressivo naquele ponto final da história (daquela cena que mencionei)? Será que a linguagem prioritariamente de imagens do cinema faria jus a uma construção tão integrada com o maravilhoso texto original? Enfim, valeria mesmo a pena? Porque, pôxa, tudo era tão legal dito através do Teatro que considerar outra forma de expressar aquilo quase parecia tentar traduzir uma música do Chico Buarque para o esperanto. Pensei então um pouco no meu amigo: se a experiência tinha sido tão boa no Teatro, por que, então, o impulso imediato ao ver algo bacana é querer vê-lo transformado em Cinema? Caí direto em especulações.

Será que é o simples fato do Cinema lidar com um registro objetivo das imagens? Mas aquelas imagens transcendiam nossa percepção cinematográfica, pois eram expressas em 3 dimensões, complementavam-se com o texto, que tinha todo um significado dito ao vivo. Não sei se poderíamos reduzir isto ao simples registro – até porque isto reduziria a obra (em pelo menos uma dimensão), pois a linguagem teatral tem especificidades diferentes da linguagem cinematográfica. Basta pensar nas experiências de teatro filmado: a obra se torna um meio-termo, algo que não é nem Teatro, nem Cinema, é um limbo de linguagem. Por isto que obras de outras artes (Teatro, Quadrinhos e sobretudo a Literatura) têm que sofrer adaptações quando transformadas em filmes.

Talvez, então, seja porque o Cinema tem um alcance maior, um poder de abrangência que o Teatro não tem, infelizmente ou não. Porque o Teatro deve ser feito ao vivo, em interação direta com o público, que interfere na obra naquele dia, naquele momento. E isto, é claro, limita bastante sua possibilidade de reprodução, tal como bem analisou Walter Benjamin quando o contexto da Cultura de Massa começava a surgir perto da metade do Século XX. E já que tínhamos passado por essa bela experiência, seria natural querer compartilhá-la com o maior número possível de gente. Só que esta outra hipótese rapidamente caiu por terra quando lembrei que o mesmo tema da peça já tinha sofrido uma adaptação para a televisão, cujo potencial de abrangência é ainda maior do que o Cinema, pois é transmitido em condições semelhantes para um grande número de pessoas advindas de públicos dos mais diversos.

O efeito foi bom, evidentemente bem “traduzido” para a linguagem de TV, que é bem diferente da de Cinema, mas não chegou a permitir uma profundidade de leitura que uma experiência como o Teatro e o próprio Cinema proporcionam. Isto porque a TV é evidentemente um veículo da Cultura de Massa, cuja função é entreter ou informar de forma mais superficial, por estar diluída em outras atividades do nosso dia-a-dia em situações que de MacLuhan a Morin já foram examinadas e descritas com muito mais propriedade. Enfim, se não era a TV que faria aquele momento menos efêmero e mais compartilhado com as pessoas, então não faria muito sentido esperar isto do Cinema.

Por que, então, meu amigo desejava tanto ver aquele momento especial no Cinema? Em que isto tornaria aquele momento tão universal, tão transcendental e, principalmente, tão eterno? Minhas opções de especulação estavam acabando, e elas tinham respondido apenas parcialmente à pergunta. E eu não queria dar o braço a torcer e simplesmente perguntar. Então, fiz uma última tentativa.

O Cinema, no decorrer do Século XX, rapidamente se tornou a mais importante forma de arte, talvez em grande parte por seu caráter de entretenimento. De todo modo, como diria Panofksy, foi o Cinema quem tirou a arte dos museus restritos e devolveu às pessoas – na verdade, tornou novamente evidente a necessidade que as pessoas têm da arte. Pois, diferente da TV, ele pressupõe um esforço e uma intenção de consumir estética: a pessoa se arruma, sai de casa, pega um ônibus ou estaciona um carro ou anda até a esquina, paga uma entrada, e então passa pelo menos uma hora e meia do seu dia trancado numa sala escura, normalmente com dezenas de desconhecidos, dependendo do que se dispôs a ver. Há, portanto, um desejo de passar por uma experiência estética, ainda que este desejo nem sempre seja consciente. Mas está lá, exposta a uma tela gigante, à mercê das suas imagens.

Aqui, há um algo a mais que as minhas duas especulações anteriores: esse caráter de ser não por acaso a principal forma de expressão artística, a mais popular forma de arte, ao registrar no tempo e espaço uma expressão autônoma, imortal praticamente, dentro de uma linguagem passível de ser reconhecida como artística. E habituados e expostos que estamos à linguagem cinematográfica, terminamos nos contentando com ela, pois nossas necessidades estéticas estão, senão completamente satisfeitas, parcialmente saciadas. E aí não criamos o costume de ler a arte em outros termos – outras línguas, podemos dizer. Línguas que somos plenamente capazes de compreender e até de dialogar. Risco imediato: achar que somente o Cinema é capaz de nos conduzir por esta experiência plena de tornar esse momento efêmero de prazer estético algo inesquecível, eterno enquanto dure.

Mas a verdade é que somos nós, com nossa história de vida, com estado de espírito e com o nosso próprio domínio da linguagem artística (domínio que é um aprendizado contínuo, e não algo que a gente já nasce sabendo), que tornamos esse momento imortal.
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