02 janeiro 2006

Fórmula e Ferramenta

Creio que já foi mencionado aqui que uma boa idéia não basta. Pelo menos não no que diz respeito à expressão artística. Não basta porque, se esta idéia não se comunica com alguém, ela morre em si mesma, e permanece apenas como uma boa idéia, sem se tornar, efetivamente, algo que fará diferença na realidade, uma obra que toca a vida de alguém e se transmite em toda a sua integridade. A expressão não se encerra no pensamento – ela apenas se inicia ali, e se completa ao ecoar do outro lado, tornando-se comunicação.

No entanto, ao observar a produção artística contemporânea, sobretudo na área audiovisual, freqüentemente me deparo com comentários do tipo “a idéia era ótima”, que sempre são complementados com algum tipo de lamentação pelo que deixou de ser feito, seja por falta de comunicabilidade (“só não entendi bem aquela parte final...”) ou de recursos (“pena que a produção era pobre”). E aí acontece, na minha opinião, a maior tragédia dentro de uma produção estética: o desperdício de uma boa idéia.

E por isto é que a boa idéia deve ser clara, e não apenas, envolvente, interessante, atrativa. Senão aquele pensamento a ser compartilhado com as pessoas pode encontrar uma resistência que não é, em essência, uma falta de receptividade, mas simplesmente uma dificuldade de decodificá-lo na mensagem. Ao mesmo tempo, esta idéia não pode – não pode mesmo, é preciso ressaltar – perder seu impulso expressivo, sua verdade, sua integridade.

No receio de que esta perda ocorra (seria quase uma fobia, eu diria), muitos isolam o processo criativo no que seria uma pura inspiração, um primeiro impulso da criação, “a idéia como ela é”, digamos assim, atirando-se a uma produção visceral e instintiva, sem muitas racionalizações ou ponderações. Pois se tem a impressão de que qualquer técnica aplicada vai macular a idéia, deixando-a suscetível a leis de mercado e a padronizações de percepção e leitura. É uma preocupação plausível, lícita, porém, na minha opinião, ingênua. Porque, dependendo de como são usadas, as técnicas não tiram da obra sua verdade. Ao contrário, ajudam a obra a chegar até a verdade.

Como sempre, gostaria de usar o cinema como guia para avançarmos nesta discussão. E tomando como ponto de partida o roteiro, a idéia de um filme antes de se submeter ao seu complexo processo de produção. A concepção da obra, portanto, e não a obra em si.Quando examinamos a bibliografia disponível sobre roteiro cinematográfico, encontramos dois grandes expoentes que representam linhas bem distintas na forma de conduzir um processo criativo – na verdade, na forma de direcionar este processo em seus respectivos mercados.

Deste lado do ringue, todo o pragmatismo norte-americano, cheio de recursos e ferramentas não necessariamente maléficos mas geralmente restritivos, personalizado em seu mais famoso defensor, autor dos maiores best sellers sobre o assunto, o consultor e professor Syd Field. E no corner oposto, a tentativa de uma antítese a esta perspectiva de mercado, cujo peso está mais no conteúdo artístico procurando não ignorar completamente os aspectos técnicos, eis o roteirista de alguns dos mais célebres filmes e diretor da primeira escola de cinema francesa: Jean-Claude Carrière.

Antes de tocarmos a sineta para o primeiro round, esta é a hora em que entra uma bela garota correndo pela platéia, gritando que tudo não passa de um engano, e que os dois não precisam brigar. Todo este mal-entendido pode ser resolvido com uma boa conversa, desde que as duas partes saibam reconhecer o que há de positivo e de negativo mal dentro de si.

Field acha que a história contida no roteiro deve ser centrada na estrutura narrativa, com um senso de timing bem apurado, no qual eventos significativos são distribuídos com cuidado e precisão no decorrer do filme – inclusive definindo o número da página em que cada evento desses deve acontecer. Para isto, contamos com outros recursos como apoio, como o uso dos arquétipos e estágios de uma jornada mitológica (já previamente estudados e estabelecidos). Se conseguirmos cumprir mais ou menos com fidelidade este modelo proposto, o envolvimento e a atenção da platéia estarão garantidos até o fim do filme. Mas será que estará garantido depois? Já Carrière enfatiza a necessidade de pensar cada cena com profundidade e tensão dramática, procurando retirar significado de cada vírgula do roteiro. O desenvolvimento da história é baseado na “regra” do Jo-Hai-Kiu, em que todo ato, cena, frase deve ser dividida em três tempos fundamentais, que são mais ou menos traduzidos em “preparação, decorrer e brilho” – algo bem mais profundo do que começo, meio e fim. Guiados por esta sabedoria milenar, basta nos mantermos sensíveis na observação da realidade e à nossa própria imaginação que estaremos produzindo algo extremamente expressivo e significativo, sem dúvida. É claro que isto é muito subjetivo e pode não ser alcançado por todos.

Se nos distanciamos um pouco da ideologia por trás destas duas perspectivas – é claro, estamos falando de linhas de criatividade adequadas aos mercados específicos de cada um dos autores – veremos que elas não são necessariamente antagônicas. Os arquétipos e as estruturas míticas, frutos de estudos sérios de gente como Jung e Campbell, e a erudição, sensibilidade e transpiração criativa ressaltadas pelos sábios orientais (e europeus) não são opostos em si, mas possivelmente (provavelmente) complementares. O problema não reside em simplesmente tomar partido de uma das direções, mas em considerar todas estas técnicas disponíveis como fórmulas prontas, ao invés de ferramentas que podem ser utilizadas a serviço da expressão.

A fórmula consiste em algo rígido, em que as variáveis servem apenas para aplicar diferentes valores numa estrutura que permanece imutável. Em termos narrativos: estaremos presenciando não apenas variações das mesmas histórias, mas as mesmas histórias em si. As variáveis podem mudar o ambiente, os personagens, mas tudo segue o mesmo caminho, sem surpresas. Tudo está encaixado na fórmula.

Se, ao invés, tomamos estas mesmas variáveis e a conduzimos por caminhos diferentes, sem a preocupação de mantê-las numa estrutura rígida para obtermos um resultado esperado, então estaremos produzindo algo único. Temos a possibilidade de subverter sua ordem, desviar seu caminho, mudar sua natureza, de acordo com o que a própria obra nos sugere. Não se define o jeito de guiar o pincel numa pintura, mas se deixa o pincel livre, embora este permaneça ali, disponível ao traço do artista. Da mesma forma, as técnicas narrativas podem servir para diagnosticar e prover o que a história precisa para ir adiante. São os instrumentos, as ferramentas de um roteirista, assim como o pincel o é para o artista plástico. Se mantivermos esta perspectiva, estaremos escapando da fórmula, do caminho previsível, e poderemos mergulhar no inesperado, no surpreendente. Sem uma estrutura rígida, ou mesmo a expectativa de um resultado esperado, ficaremos livres para utilizar estas ferramentas sem medo, pondo-as a serviço de nossa necessidade de expressão.

O grande desafio de qualquer artista é encontrar este equilíbrio entre sua verdade intrínseca e sua externalização. E, mesmo que não tenhamos a ambição, a pretensão ou nem mesmo o desejo de sermos grandes (de chegarmos a este extremo), precisamos ter este mínimo equilíbrio como meta, pois é através dele que a arte se completa – é quando ela consegue ser lida na medida justa de sua essência.
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