01 janeiro 2006

A regra da exceção

Já faz algum tempo que descobri minhas grandes paixões: cinema, literatura e música. Não necessariamente nesta ordem, mas elas são tão definitivas na minha vida que terminei arrumando um jeito de trabalhar com as três. E estudá-las a fundo. Na verdade, particularmente duas delas, pois a terceira que mencionei, a música, prefiro deixá-la num fascínio mais distanciado, que me permita ser um pouco menos racional com as coisas. Mas as outras duas, bom, estas eu sempre tive uma percepção sensorial que ia junto com técnica – o tipo de experiência pela qual só pessoas que curtem a técnica como forma de expressão podem passar. Não sei se existe muita gente assim, aliás, mas isto têm me proporcionado coisas boas nos últimos tempos. E outras dores de cabeça, preciso admitir.

Só que algumas destas dores de cabeça são daquelas que dói gostoso. Explicando melhor, antes que alguém ache que eu sou um masoquista pervertido, já ouvi um tenista falar uma vez deste prazer com a dor, sobretudo depois de um fim-de-semana vitorioso; parece que nós, atletas intelectuais (Argh! Eu falei “atletas intelectuais”?), podemos sentir a mesma coisa com o nosso músculo principal. Quando não encarada isoladamente, simplesmente como uma sensação ruim, mas como parte de um processo maior em que as dificuldades fazem parte, dão sabor às conquistas, a dor pode ser extremamente positiva, na verdade. Ela pode nos fazer crescer, apontar para a felicidade, ou pelo menos para o aprimoramento das nossas habilidades e sua aplicação para a busca de uma vida mais feliz. A dor pode ser, portanto, o caminho da felicidade. Mas disso falarei melhor depois, num artigo futuro. (Acho que esta é a primeira vez que alguém usa uma referência futura, e não passada).

Este é apenas o primeiro dos nossos paradoxos neste artigo. Mas não o principal. Isto porque queria falar de uma dor de cabeça em particular: “Dogville”, o mais recente trabalho do dinamarquês Lars von Trier. Muito já se falou deste filme, muita controvérsia foi criada em torno dele, muito da temática já se esgotou, até. Só que eu gostaria de falar de um outro aspecto, chamar a atenção para algo que diz respeito mais à técnica – à técnica narrativa, à linguagem e ao estilo expostos na peça. Queria falar, enfim, da imagem que von Trier propõe na sua obra.Antes de tudo, preciso introduzir dois conceitos que venho desenvolvendo em reflexões recentes (que talvez um dia se tornem algo de útil, como uma dissertação de mestrado ou coisa parecida): imagem objetiva e imagem subjetiva.

O ser humano é sobretudo imagético; percebe o mundo principalmente através das imagens. Pegue um indivíduo de nossa espécie que tenha todos os sentidos dentro da curva de normalidade e tire um sentido por vez. Certamente, aquele de que mais sentirá falta será a visão – mal vai se mover. Tire-lhe a visão, e cause qualquer barulho, expila qualquer cheiro, jogue-lhe na mão qualquer tecido, faça-o provar qualquer iguaria. Ele sempre irá remeter a uma imagem daquilo que está experimentando: um vaso caindo na sala, uma pétala de rosa, uma tira de seda vermelha, um pedaço de marzipã. A visão é uma necessidade sensorial constante.

Sem falar em nível estético: das oito artes reconhecidas (aí incluindo as histórias em quadrinhos como a oitava), pelo menos seis são apreciadas prioritariamente no aspecto visual – e as restantes, Música e Literatura, vão igualmente remeter a algum outro tipo de imagem. Aí chegamos nos conceitos de que falei.

De um lado, temos a imagem objetiva, aquilo que é colocado objetivamente diante de nossos olhos para apreciação direta, imediata, para que absorvamos sentido através da sua simples visão. Isto acontece quando apreciamos a maioria das artes, mesmo que estas venham acompanhadas de outros aspectos. De toda forma, é à imagem que atribuímos sentido.

Do outro lado, temos a imagem subjetiva, uma imagem sugerida por um outro nível de informação (sonoro ou textual), que é remetida a nós e que, portanto, tem sua própria construção diretamente dependente de cada expectador. Quando falo ou leio “mão fechada”, por exemplo, cada um vai visualizar uma mão fechada diferente. Da mesma forma, quando escuto uma melodia sem letra, aquilo pode me fazer ter qualquer tipo de lembrança, sensação e imaginação – o que vai ser diferente da pessoa que está junto de mim, mesmo ela tendo uma formação e educação parecida com a minha. O Cinema dispõe de imagens colocadas objetivamente diante de uma câmera. Quando colocadas em seqüência, elas adquirem sentido, ou melhor, atribuem sentido ao filme. Este sentido pode ser subjetivo, mas as imagens não. Estão lá, registradas através de uma máquina incapaz em si de modificá-las subjetivamente, vistas em plano geral, médio ou fechado, do detalhe específico à contextualização aberta. O texto, por sua vez, faz com que a imagem construída a partir dele seja de uma forma diferente na cabeça de cada um.

No caso de “Dogville”, há uma quebra radical nesta lógica: a maior parte das imagens de contextualização do filme são sugeridas: das portas e paredes das casas às mais belas paisagens do vale e das montanhas em torno da minúscula cidade. E isto é um aspecto íntimo do estilo, e da própria expressividade do filme. De tão ínfima, a cidade tem paredes invisíveis, ao mesmo tempo que não se vê através das paredes invisíveis. E há um mundo ao redor dela, mas um mundo apenas imaginado, como se seus habitantes tivessem imposto a si mesmos uma prisão subjetiva, um sistema quase hermético de vida. Enfim, “Dogville” é um desses filmes anormais que surgem a cada dez anos (se é que existe uma periodicidade tão precisa), que mexe com as estruturas do que se conhece como expressão artística, e que faz pensar como a capacidade do ser humano de expressar e refletir as coisas é aparentemente infindável.

Este campo, nós continuamos explorando infinitamente, questionando o tempo todo as características que nós mesmos nos esforçamos tanto para identificar, propor e instituir. O que seria natural nos fazer concluir que, se existe alguma regra rígida dentro da expressão artística é a da exceção, da necessidade de não haver regras – e me parece que mesmo esta regra pode ser quebrada. Seria uma espécie de anarquismo necessário à sobrevivência e à vitalidade da linguagem artística, sem o qual ela cairia inevitavelmente numa mesmice eterna, aborrecendo-nos e fazendo-nos procurar outros prazeres ou outras sensibilizações de sentido, provavelmente pervertendo nossas almas, dando-lhes a falsa perspectiva de que o universo tem fim e que nós chegamos até ele.

Na recente exposição de Pablo Picasso em São Paulo, estão expostas, juntamente com suas obras, algumas passagens de vida e frases que lhe são atribuídas. Particularmente uma delas entrou e ficou na minha cabeça: “A Arte não é a verdade. É uma mentira que nos ajuda a entender a verdade.”Acho que esta preocupação em negar a Arte como verdade (ou expressão dela) tem um pouco a ver com esta necessidade da ausência de regras – tanto na criação quanto, e talvez principalmente, na leitura e apreciação de obras artísticas. É tirar do artista a soberba de estar inventando a roda, mas a consciência de estar apresentando uma visão verdadeira e pessoal da roda, fazendo com que as pessoas a vejam de outra forma e a reflitam de outra forma. Talvez seja esta a chave, não sei.Só sei que cada vez mais me parece que a Arte é este sistema anárquico anti-autônomo, eternamente mutante, cuja razão de existir parece estar em questionar constantemente a própria existência. Porque o próprio pensamento humano é contraditório, mutante e auto-questionador, e falando de uma espécie cuja percepção do mundo está intrinsecamente ligada à percepção da beleza, seria natural estabelecer esta perspectiva como uma possível chave de leitura da realidade. Pode até doer, mas vai doer gostoso.

E no final, seremos vitoriosos...

(publicado originalmente no Webzine Vitrolaz)
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