Sobre direção de cinema...
Sim. “Hollywood Ending” (traduzido em português como “Dirigindo no Escuro”) é uma comédia ligeira, talvez menos sutil do boa parte dos filmes que Woody Allen já fez. É conduzido com habilidade, algo inevitável para o talento e estrada do diretor, é claro, mas sem muitas novidades para quem conhece sua obra (seja a fundo ou superficialmente).
Ao mesmo tempo, tive a impressão de ter visto um dos filmes mais expressivos já feitos. Talvez pelo fato de que parecia, em diversos momentos, estar falando diretamente para mim, vejam só. Uma obra de arte cria esta condição egocêntrica, em que a pessoa-público se desliga do resto do mundo e se entrega a uma viagem subjetiva, impossível de ser plenamente compartilhada na maioria das vezes. E aí essa pessoa tem a impressão de estar diante de algo que, mesmo criado por um outro que nem sabe da sua existência, fez algo especialmente para ela, como se a conhecesse há anos, e melhor do que qualquer amigo, amante ou cônjuge.
E já que estamos egocêntricos hoje, vou falar um pouco da minha viagem. Não porque tenha a pretensão de achar que alguém esteja interessado no que digo (quem não estiver, a propósito, pode parar por aqui mesmo). É só por conta deste outro efeito que a obra tem: por mais pessoal que seja a experiência, você quer compartilhá-la de qualquer jeito, mesmo sabendo que se trata de um esforço inútil. De qualquer forma, aqui vai.
Sou um diretor de cinema. Estou no início da carreira ainda, mas já me chamo assim, não porque tenha feito um par de filmes, isto não é nada, mas porque simplesmente não há outra forma de me chamar. Porque esta relação temporal, de medir o que já fiz e o que ainda vou fazer, parece sem sentido quando penso na minha essência, na minha forma de ver o mundo, de respirar, de olhar para as pessoas, de caminhar na rua, de guiar meu carro, de enquadrar a realidade e imaginar possibilidades, de rir sozinho quando penso numa história, de chorar sem motivo aparente mas certamente com um bom motivo interior. De criar, enfim, um mundo próprio, tão indivisível quanto desesperado para ser compartilhado.
E aí me vejo como expectador (este é o papel a que o cineasta mais deve se submeter) de um filme que conta a história de um diretor temporariamente cego, que não tem escolha senão mentir e dirigir um filme na sua trágica condição. Parte disto é uma situação cômica, que tem a ver com as paranóias do autor, e que renderá boas risadas para alguém. Mas também soa uma bela metáfora, esta falta de escolha de ter que se expressar quando todo o universo exterior lhe diz o contrário. E aí as pessoas o acham louco, excêntrico e tudo o mais. Talvez ele seja mesmo mas, e daí? A causa a que serve é maior, e justifica quase toda atitude.
Saio da sala num misto de incerteza. Rio ao mesmo tempo que choro, me entusiasmo ao mesmo tempo que me desespero. Como posso viver assim, nessa angústia de ter que colocar pra fora o que sinto através de uma arte que demanda tanto esforço e envolvimento de outras pessoas? Que tipo de expressão é esta que parte de uma necessidade pessoal mas que depende de tantos fatores externos, na verdade de uma íntima experiência compartilhada com outras pessoas, para ser realizada? Como sobreviver a isto?E como poderia ser diferente? A luz do cinema me deixou cego a qualquer outra coisa.E aí me olho por instante (um olhar exterior, como se pudesse sair do corpo e me enxergar na realidade que não controlo), e percebo que estou caminhando de braços cruzados, bem rente à parede, olhando fixamente a cerâmica do chão. Que visão estranha! No entanto, não tenho nem energia de pensar em ser diferente, meus pensamentos parecem, pelo menos por um momento, mais importantes do que qualquer impressão que possam ter de mim. Deve ser isto que leva alguém ao excêntrico, acho.
O fato de estar cego num set de filmagem representa algo inadmissível para um diretor: perder o controle de sua obra. Curiosamente, há alguns anos, pensei na mesma possibilidade: o que eu faria se ficasse cego? Fiquei formulando as possibilidades, e o único questionamento a que cheguei foi em “como poderia passar para a equipe o que estava pensando?” Deixar de fazer cinema nem me passou pela cabeça.
No filme, Allen cita o Beethoven surdo que compôs a Nona Sinfornia. Mesmo passando longe de ser gênio, eu acho que encararia o desafio de fazer algo que nunca iria ver, o incerto, o fora de controle – na verdade, a obra, que a um certo ponto é independente de mim. Por que se preocupar, então? Só preciso falar o que está na minha cabeça da forma mais precisa possível, e pronto, o que será, será. A única diferença é que não vou ver o resultado. Mas também não preciso, isso seria apenas um capricho da minha parte, inútil para a obra.
São essas horas em que eu me entendo mais. Por mais angustiante, difícil, estressante, o que quer que seja, não posso fazer outra coisa. Eu escolhi, e fui escolhido. Não posso ir de encontro à minha essência, nem à causa da minha existência. Foi isto que aprendi desta comédia ligeira: o Cinema é meu ar.
E eu não posso viver sem respirar.
(*) Nome inspirado (aliás, chupado mesmo) no maravilhoso livro de David Mamet.
Ao mesmo tempo, tive a impressão de ter visto um dos filmes mais expressivos já feitos. Talvez pelo fato de que parecia, em diversos momentos, estar falando diretamente para mim, vejam só. Uma obra de arte cria esta condição egocêntrica, em que a pessoa-público se desliga do resto do mundo e se entrega a uma viagem subjetiva, impossível de ser plenamente compartilhada na maioria das vezes. E aí essa pessoa tem a impressão de estar diante de algo que, mesmo criado por um outro que nem sabe da sua existência, fez algo especialmente para ela, como se a conhecesse há anos, e melhor do que qualquer amigo, amante ou cônjuge.
E já que estamos egocêntricos hoje, vou falar um pouco da minha viagem. Não porque tenha a pretensão de achar que alguém esteja interessado no que digo (quem não estiver, a propósito, pode parar por aqui mesmo). É só por conta deste outro efeito que a obra tem: por mais pessoal que seja a experiência, você quer compartilhá-la de qualquer jeito, mesmo sabendo que se trata de um esforço inútil. De qualquer forma, aqui vai.
Sou um diretor de cinema. Estou no início da carreira ainda, mas já me chamo assim, não porque tenha feito um par de filmes, isto não é nada, mas porque simplesmente não há outra forma de me chamar. Porque esta relação temporal, de medir o que já fiz e o que ainda vou fazer, parece sem sentido quando penso na minha essência, na minha forma de ver o mundo, de respirar, de olhar para as pessoas, de caminhar na rua, de guiar meu carro, de enquadrar a realidade e imaginar possibilidades, de rir sozinho quando penso numa história, de chorar sem motivo aparente mas certamente com um bom motivo interior. De criar, enfim, um mundo próprio, tão indivisível quanto desesperado para ser compartilhado.
E aí me vejo como expectador (este é o papel a que o cineasta mais deve se submeter) de um filme que conta a história de um diretor temporariamente cego, que não tem escolha senão mentir e dirigir um filme na sua trágica condição. Parte disto é uma situação cômica, que tem a ver com as paranóias do autor, e que renderá boas risadas para alguém. Mas também soa uma bela metáfora, esta falta de escolha de ter que se expressar quando todo o universo exterior lhe diz o contrário. E aí as pessoas o acham louco, excêntrico e tudo o mais. Talvez ele seja mesmo mas, e daí? A causa a que serve é maior, e justifica quase toda atitude.
Saio da sala num misto de incerteza. Rio ao mesmo tempo que choro, me entusiasmo ao mesmo tempo que me desespero. Como posso viver assim, nessa angústia de ter que colocar pra fora o que sinto através de uma arte que demanda tanto esforço e envolvimento de outras pessoas? Que tipo de expressão é esta que parte de uma necessidade pessoal mas que depende de tantos fatores externos, na verdade de uma íntima experiência compartilhada com outras pessoas, para ser realizada? Como sobreviver a isto?E como poderia ser diferente? A luz do cinema me deixou cego a qualquer outra coisa.E aí me olho por instante (um olhar exterior, como se pudesse sair do corpo e me enxergar na realidade que não controlo), e percebo que estou caminhando de braços cruzados, bem rente à parede, olhando fixamente a cerâmica do chão. Que visão estranha! No entanto, não tenho nem energia de pensar em ser diferente, meus pensamentos parecem, pelo menos por um momento, mais importantes do que qualquer impressão que possam ter de mim. Deve ser isto que leva alguém ao excêntrico, acho.
O fato de estar cego num set de filmagem representa algo inadmissível para um diretor: perder o controle de sua obra. Curiosamente, há alguns anos, pensei na mesma possibilidade: o que eu faria se ficasse cego? Fiquei formulando as possibilidades, e o único questionamento a que cheguei foi em “como poderia passar para a equipe o que estava pensando?” Deixar de fazer cinema nem me passou pela cabeça.
No filme, Allen cita o Beethoven surdo que compôs a Nona Sinfornia. Mesmo passando longe de ser gênio, eu acho que encararia o desafio de fazer algo que nunca iria ver, o incerto, o fora de controle – na verdade, a obra, que a um certo ponto é independente de mim. Por que se preocupar, então? Só preciso falar o que está na minha cabeça da forma mais precisa possível, e pronto, o que será, será. A única diferença é que não vou ver o resultado. Mas também não preciso, isso seria apenas um capricho da minha parte, inútil para a obra.
São essas horas em que eu me entendo mais. Por mais angustiante, difícil, estressante, o que quer que seja, não posso fazer outra coisa. Eu escolhi, e fui escolhido. Não posso ir de encontro à minha essência, nem à causa da minha existência. Foi isto que aprendi desta comédia ligeira: o Cinema é meu ar.
E eu não posso viver sem respirar.
(*) Nome inspirado (aliás, chupado mesmo) no maravilhoso livro de David Mamet.
2 Comments:
Muito bom ler uma crítica tão boa sobre um dos filmes de Woody Allen que mais gostei. Um abraço cheio de admiração, Léo.
Pia
Maravilhoso livro de David Mamet..
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