Tempo de Sonhar
Abstração pós-orgânica e outros termos estranhos.
Li outro dia no blog do Silvio Meira uma nota sobre o modafinil, uma droga que faz com que o tempo de 4 a 5 horas de sono tenham uma equivalência ao descanso de 8 a 10 horas, desenvolvido para pessoas que precisam ter atenção desperta pronlongada, como soldados, programadores de software ou workaholic insones obsessivos como este que vos fala. Interessante que a própria existência de drogas como essa parte de uma concepção em que ‘dormir’ não está contido no conceito de ‘viver’ – para muita gente, de fato, é perda de tempo (falo por mim também).
A idéia me pareceu, a princípio, tentadora, mas fiquei pensando em outros possíveis desdobramentos. Afinal de contas, o sono, mesmo sendo uma perda de tempo real para uns, tem lá suas atribuições, certo? Além da mais óbvia, de repousar o corpo e a mente de uma jornada inevitavelmente intensa, preparando para uma próxima igualmente empenhativa, existe a questão do sonhar. Pelo que sei, o sonho corresponde a uma parte muito pequena do nosso sono, sendo restrita ao nível 2 ou 3, quando nossas pálpebras estão se mexendo rapidamente (o popular Rapid Eyebrow Movement , que deu nome a uma banda americana bastante conhecida). Mas, e se a diminuição de sono, proposta por drogas como o modafinil, for proporcional em suas fases? A conseqüência imediata seria diminuir o tempo de sonhar, minimizando suas funções fisiológicas, lúdicas e simbólicas.
Certo, esta última conclusão pode não ser cientificamente comprovada (mesmo levando em conta a proporcionalidade na matemática ou a própria fisiologia do sono). Porém, pode servir também como metáfora para os nossos tempos. Uma metáfora, à primeira vista, contraditória em vários aspectos: enquanto alguns de nós aceitam, passiva ou ativamente, esta submissão total às rotinas de trabalho e produtividade (de modo a assumir o tempo desperto como o tempo vivido), inclusive dormindo naturalmente menos que a maioria das pessoas, outros, precisando de mais horas de sono, teriam de se ver obrigados a consumir a tal droga, “igualando” a quantidade (ou possibilidade) de atividades.
Esta perda de espontaneidade existencial pode (1) não dar conta de uma lacuna relativa entre as pessoas, já que o tempo criativo é tão subjetivo e pessoal quanto necessidades fisiológicas de mais ou menos horas de sono, como também pode (2) gerar mais um elemento de stress e tensão, fazendo com que haja uma obrigatoriedade de tornar o tempo adicional útil; ou, ainda, (3) promover uma espécie de “abstração pós-orgânica”, ou seja, uma necessidade de gerar idéias, detectar desejos e reler a realidade não mais dentro do nosso tempo biológico, mas de um tempo artificial, auto-imposto, pondo a perder o próprio conceito de “abstração”.
Mas a contradição maior parece vir na forma de contexto histórico mesmo. Se pensarmos no século XIX, quando os meios de comunicação de massa ganharam força na sociedade como expressão de uma certa ideologia do sistema capitalista cada vez mais arraigado, vemos uma forma de organização que se direcionava para a conformação de crenças e bens. Ou seja, a lógica de uma “sociedade industrial” ditava o que as pessoas tinham que consumir, já que os produtos e as idéias eram concebidos em série, numa linha de montagem que vai do sentido literal ao metafórico.
Um século e meio depois, vemos os meios de massa se tornando “novos meios”, expressão de um outro tipo de organização social: os meios não são mais padronizados para uma “massa” – fatores como interatividade, automação e maleabilidade fazem com que o consumo seja configurado em termos personalizados, aproximando-se da utopia da sociedade de indivíduos únicos. Neste contexto “pós-industrial”, é a customização dos bens e idéias que impera, uma multiplicidade de escolha de consumo oferecida pelas novas tecnologias.
Ligando com a questão da droga do sono, ou seja, mais uma ferramenta técnica manipulando a rotina humana, surge o paradoxo: estaríamos usando nosso tempo útil adicional como forma de igualar comportamentos e conseqüentes produtividades (lógica industrial) ou para dar conta de uma necessidade nossa enquanto indivíduos (lógica pós-industrial)? Não tenho a resposta imediata, mas me parece que, de um jeito ou de outro, estaríamos sujeitos a um sistema que nos cobra eterna produtividade e submissão.
Nossa, parece que eu me tornei apocalíptico, de repente. Vou tentar aliviar, preservando minha personalidade e individualidade e não tomando o tal remédio, continuando com minhas 4 ou 5 horas naturais de sono, e mantendo meus hábitos workahólicos, já que eles são parte de mim mesmo.
E prometo continuar sonhando...
Li outro dia no blog do Silvio Meira uma nota sobre o modafinil, uma droga que faz com que o tempo de 4 a 5 horas de sono tenham uma equivalência ao descanso de 8 a 10 horas, desenvolvido para pessoas que precisam ter atenção desperta pronlongada, como soldados, programadores de software ou workaholic insones obsessivos como este que vos fala. Interessante que a própria existência de drogas como essa parte de uma concepção em que ‘dormir’ não está contido no conceito de ‘viver’ – para muita gente, de fato, é perda de tempo (falo por mim também).
A idéia me pareceu, a princípio, tentadora, mas fiquei pensando em outros possíveis desdobramentos. Afinal de contas, o sono, mesmo sendo uma perda de tempo real para uns, tem lá suas atribuições, certo? Além da mais óbvia, de repousar o corpo e a mente de uma jornada inevitavelmente intensa, preparando para uma próxima igualmente empenhativa, existe a questão do sonhar. Pelo que sei, o sonho corresponde a uma parte muito pequena do nosso sono, sendo restrita ao nível 2 ou 3, quando nossas pálpebras estão se mexendo rapidamente (o popular Rapid Eyebrow Movement , que deu nome a uma banda americana bastante conhecida). Mas, e se a diminuição de sono, proposta por drogas como o modafinil, for proporcional em suas fases? A conseqüência imediata seria diminuir o tempo de sonhar, minimizando suas funções fisiológicas, lúdicas e simbólicas.
Certo, esta última conclusão pode não ser cientificamente comprovada (mesmo levando em conta a proporcionalidade na matemática ou a própria fisiologia do sono). Porém, pode servir também como metáfora para os nossos tempos. Uma metáfora, à primeira vista, contraditória em vários aspectos: enquanto alguns de nós aceitam, passiva ou ativamente, esta submissão total às rotinas de trabalho e produtividade (de modo a assumir o tempo desperto como o tempo vivido), inclusive dormindo naturalmente menos que a maioria das pessoas, outros, precisando de mais horas de sono, teriam de se ver obrigados a consumir a tal droga, “igualando” a quantidade (ou possibilidade) de atividades.
Esta perda de espontaneidade existencial pode (1) não dar conta de uma lacuna relativa entre as pessoas, já que o tempo criativo é tão subjetivo e pessoal quanto necessidades fisiológicas de mais ou menos horas de sono, como também pode (2) gerar mais um elemento de stress e tensão, fazendo com que haja uma obrigatoriedade de tornar o tempo adicional útil; ou, ainda, (3) promover uma espécie de “abstração pós-orgânica”, ou seja, uma necessidade de gerar idéias, detectar desejos e reler a realidade não mais dentro do nosso tempo biológico, mas de um tempo artificial, auto-imposto, pondo a perder o próprio conceito de “abstração”.
Mas a contradição maior parece vir na forma de contexto histórico mesmo. Se pensarmos no século XIX, quando os meios de comunicação de massa ganharam força na sociedade como expressão de uma certa ideologia do sistema capitalista cada vez mais arraigado, vemos uma forma de organização que se direcionava para a conformação de crenças e bens. Ou seja, a lógica de uma “sociedade industrial” ditava o que as pessoas tinham que consumir, já que os produtos e as idéias eram concebidos em série, numa linha de montagem que vai do sentido literal ao metafórico.
Um século e meio depois, vemos os meios de massa se tornando “novos meios”, expressão de um outro tipo de organização social: os meios não são mais padronizados para uma “massa” – fatores como interatividade, automação e maleabilidade fazem com que o consumo seja configurado em termos personalizados, aproximando-se da utopia da sociedade de indivíduos únicos. Neste contexto “pós-industrial”, é a customização dos bens e idéias que impera, uma multiplicidade de escolha de consumo oferecida pelas novas tecnologias.
Ligando com a questão da droga do sono, ou seja, mais uma ferramenta técnica manipulando a rotina humana, surge o paradoxo: estaríamos usando nosso tempo útil adicional como forma de igualar comportamentos e conseqüentes produtividades (lógica industrial) ou para dar conta de uma necessidade nossa enquanto indivíduos (lógica pós-industrial)? Não tenho a resposta imediata, mas me parece que, de um jeito ou de outro, estaríamos sujeitos a um sistema que nos cobra eterna produtividade e submissão.
Nossa, parece que eu me tornei apocalíptico, de repente. Vou tentar aliviar, preservando minha personalidade e individualidade e não tomando o tal remédio, continuando com minhas 4 ou 5 horas naturais de sono, e mantendo meus hábitos workahólicos, já que eles são parte de mim mesmo.
E prometo continuar sonhando...
12 Comments:
Acho que só quem foge a essa lógica apocalíptica são aqueles que acham o sono mais interessante que a vigília, e só permanecem acordados porque não conseguem dormir...
eu vou continuar dormindo também! e sonhando.
EU por outro lado tenho valorizado MUITO o meu sono... sabe como é... a gente dá valor as coisas quando as perdemos. :)
Mas a pergunta divertida é, será que existiriam pessoas como Neil Gaiman, Lovecraft, que têm obras baseadas em sonhos e efemeridades relacionadas? :)
Uma droga dessas talvez afetasse a forma como eles registram essas experiências. Será que as pessoas que têm seu sono "Comprimido" por uma droga assim conseguem lembrá-los?
Não é a partir dos sonhos que as coisas se realizam? Então, vamos sonhar sempre e dormir sempre (que for possível...rs)
Eu faço samba e amor a noite inteeeeeeira..... e tenho muito sono de manhã.....
Leo, acrescento aos seus questionamentos o aspecto do consumo. No meu ponto de vista, seria inevitável que o tempo desperto dos indivíduos, aumentado a partir desta droga, fosse tomado pelos estímulos ao consumo. Provavelmente, esta droga seria mais uma forma de converter os nossos sonhos em desejos de consumo, ampliando ainda mais o tempo dedicado ao ato de consumir e de ser consumido (acho que, pelo menos neste ponto, em todos os sentidos... hahahahaha).
"Compre uma língua de tucano (é uma umbelífera), uma língua de vaca (Chaptalia nutans é o seu nome científico, não vá até santa Catarina por causa disso), um lírio branco (Lilium candidum), dois caquis (não é cáqui, não vá comprar o brim da cor dos caquis), ferva durante cinco minutos. Depois jogue fora. É uma simpatia para você não dormir."
Não tenho opinião formada sobre o assunto, Leo. Mas ao ler seu texto, lembrei de situações em que eu acordava no meio do sonho e aí tentava dormir novamente para continuar. Sempre em vão.
Se a droga garantir episódios inteiros de sonho, vai ser uma mão na roda para quem, como eu, odeia o tal do a seguir cenas do próximo capítulo.
4 a 5 horas de sono Leo, só? Pois eu durmo de 12 a 14 quando posso e sem nenhum peso na consciência. É cada coisa que eu sonho... E sempre que posso tô na cama, mesmo quando tô acordada. Adoro uma boa cama. Será que seu problema não está no travesseiro? Vou lhe dar um novo de presente de aniversário. E converse com seu psiquiatra sobre isso, se não tiver um arrume. Eles passam uns remedinhos pra dormir ótimoooossss.
e a noite ....eu faço samba e amor a noite inteeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeira..... e tenho muito sono de manhã e de tarde..... e a noite.... eu faço...
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Dormir é uma das coisas mais belas que existe,
não é o fato de apenas fechar os olhos, mas sim sair dessa vida que violentamente,(talvez, não sei bem o que digo apenas escrevo...)nos torna tão insenssíveis uns com os outros por isso há tanta gente triste e deseperançosa nesse mundo(posso estar errado...), e
dormir seria poder sonhar um sonho em que se pode profudamente acreditar, apenas nele e
naquele instante, sem deixar que ele domine sua vida (mas pensando bem seria impossivel não ser dominado,seria?!),
é um fato de morrer por instantes... -resumindo tudo: todos precisam e devem dormir,
eu particulamente amo dormir e sonhar meu sonho, mais do que a mim mesmo(hipocrisia).
(deixar de lado tudo que nos cerca, é esquecer a vida.)
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