Estudos sobre a tristeza - cap. 1: de memórias, saudades e afins
CÁRCERE DE MEMÓRIAS
Ele funcionava por fragmentos. Às vezes, achava que não passava disso: um fragmento. Morava longe de sua cidade natal, não tinha parentes ou amigos ali. Amores muito menos. Porém, na ordem de suportar a solidão, havia se auto-rogado uma maldição: viver apenas de lembranças, até que um fato completamente novo lhe quebrasse o feitiço.
Essa maldição era muito menos mística do que podia parecer. Muito pelo contrário, tratava-se de algo extremamente racional: em vez de encarar os fatos como novos, ele passou a remetê-los a eventos do seu passado. E passou, assim, a ver as novidades de cada dia como rotina, ou repetições de acontecimentos.
No início, não foi tão fácil — ele tinha que se policiar e se forçar a pensar um pouco. Ia pro escritório ao longo de um rio desconhecido que cortava a cidade, e pensava, saudoso: "na minha cidade tinha um rio." Chegava no trabalho e se deparava com um problema, e então dizia a si mesmo: "já resolvi esse problema pelo menos umas mil vezes." Voltava pra casa e reposicionava os móveis, deixando-os na mesma configuração de sua casa anterior. Olhava para a sua cama e se forçava a ver o amor de sua vida dormindo tranquilamente, dando-lhe um beijo de boa noite antes de voltar pra sala e tomar uma taça de vinho (velho hábito), esperando o sono chegar.
Foi um esforço árduo, mas valeu a pena: logo, o rio era o seu, o trabalho era o seu, a casa era a sua, o amor era seu. E a vida, assim, era a sua.
E por viver de lembranças, ele era o homem mais feliz do mundo.
Até que um dia, estava ele tranquilo chegando no trabalho, a uma coisa completamente nova se apresentou. Era um problema sem precedentes, sem aviso prévio que fosse, jurisprudência muito menos. Uma coisa que ele sempre temeu em toda a sua vida recente: um fato completamente novo.
Habituado que estava a acessar suas memórias, ele passou um bom tempo procurando uma experiência que pudesse aplicar ao problema. Tempo perdido, de fato, o fato era novo. E sendo algo que pedia uma resolução imediata e eficaz, ele teve que se esforçar muito para sair do seu labirinto de memórias e pensar naquilo especificamente.
Até que ele conseguiu. Lembrou que suas lembranças eram lembranças, ou seja, acontecimentos do passado, e não do presente, do futuro muito menos. Então, olhou o problema de frente e o resolveu. E assim, o fim do expediente chegou.
E ele voltou pra casa achando o rio estranho. Ao sacar o chaveiro para abrir a porta do prédio, pensou que ele pesava mais do que de costume. Subiu as escadas até o fim, e teve que descer dois lances de volta, tendo errado o andar. Mal conseguiu reconhecer a porta de seu apartamento. e quando abriu, seu amor não estava lá. Nem dormindo, desperto muito menos. Achou o vinho diferente e o sono, naquela noite, não chegou mesmo depois de uma garrafa inteira.
E ele lembrou que estava só. E as lembranças se tornaram uma cruel tensão entre eventos outrora felizes em si e o estatuto de serem, afinal, apenas lembranças.
E por viver de lembranças, ele era o homem mais infeliz do mundo.
6 Comments:
Tais ficando bom nesta coisa de contos.
mas não vai ficar "se achando" por causa disso...
Minha recorrente infelicidade parece mesmo residir nas lembranças implantadas de momentos felizes...na verdade, eles ainda não aconteceram.
A história da vida sempre promete.
Lindo texto!
Este comentário foi removido pelo autor.
A existência ganha novos contornos durante, e depois num breve tempo, depois de ler "memórias,saudades e afins". Dá, pelo menos,um curta. Por que não faz, Leo ? a tensão entre transformar lembranças como razão de ser do presente, e o desarmar completo diante de um fato novo, é a nossa situação existencial. Sua criação se reveste de uma aura ontológica, que já se insinua como antológica.
(( comecei do 5 e vou chegando agora ao 1,sem passar pelo 2 ainda. E assim a montagem fica não-linear).
O comentário tido como anônimo é de Roberto Menezes.Não gosto de anonimato em comentários que faço, seja sobre uma mulher, seja sobre uma criação literária.
Não sei porque a escolha de identidade não funcionou.E agora Léo ao tentar copiar o comentário sumiu. Vou tentar refazê-lo agora.
A tensão em fazer das lembranças o motor das ações presentes é uma situação precária, uma invenção que já se apresenta como finita, cheia de angústia diante da nossa condição de "nada existencial". Eu estou fazendo um caminho de montagem não linear para ler este Esudo sobre a Tristeza. Comecei do 5,fui pro 4 e pro 3. Agora,passei pelo Prólogo e estou no 1.Ainda vou passar pelo 2.Mas já posso dizer que esse ensaio traz o travo amargo da contingência disso que nós, pretensiosamente, chamamos de "condição humana",quando somos somente errantes e replicantes(como em Blade Runner)."Memórias ,saudades e afins" traz a náusea existencial. É ontologógica., E já se insinua como antológica. Vale,no mínimo, um curta-metragem,Leo.Por que não faz?
Léo : o comentário anônimo voltou. Dessas coisas eu não entendo. Como da vida em si. Mas quero corigir a palavra ontológica no final do último comentário. Erroi de digitação.A frasde certa : "é ontológica, mas já se insinua como antológica". Acho que o comentário que foi creditado como anônimo aí em cima, define melhor. Escolha o que você quiser.Um grande abraço
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