Questões Arcaicas (Futuros Antigos - parte 2)
Num post antigo, falei de algumas vantagens de andar de ônibus. Hoje em dia, além da questão ecológica (menos veículos por combustão nas ruas e tal) e do mencionado tempo pra pensar na vida, escutar música e ler, eu acrescentaria um outro: forçar você a sair cedo de casa e consequentemente chegar mais cedo no trabalho. No caso, eu era o primeiro professor a chegar no curso de comunicação da Universidade Católica, então tinha tempo de preparar as coisas com tranquilidade e também bater um papo com a segunda professora a chegar, Neide Mendonça, uma senhora adorável que leciona português há muitos anos, e que como eu está revoltada com a reforma ortográfica. Se pensamentos afins matassem, as particularidades idiomáticas da CPLP estariam salvaguardadas diante do enterro definitivo das mudanças propostas. Mas, enfim, nem tudo é perfeito…
Pensei nisto esta semana porque, numa dessas viagens de ônibus, cheguei à conclusão de que o meu português já se tornou arcaico. E percebi que minha tecnofobia chegou finalmente ao meu domínio da língua. Consequentemente o avanço da assim dita pós-modernidade não se resume às questões tecnocráticas, mas ao cotidiano comum mesmo. Tenho uma certa resistência em deixar de acentuar algumas coisas e só aboli o trema porque ainda não encontrei uma tecla de atalho neste computador. Enfim, outro processo contemporâneo que me faz me sentir mais velho.
Chegando ao meu destino depois dessa viagem (o chá de fraldas de Jr. Black, amigo músico e ator aqui de Recife), tive uma conversa bem interessante com Jarbas Jácome, músico e mestre em computação, sobre arte e mídias digitais. Ele me falou de um evento que vai acontecer por estes dias em São Paulo, o FILE - Festival Internacional de Linguagem Eletrônica. Em pauta, exibições de peças multimídia, hipermídia e afins, além de discussões bem avançadas sobre linguagem artística ou expressiva, sem se preocupar muito sobre o que define ou não uma obra como "arte" ou "mero entretenimento". De fato, uma das coisas que saiu na conversa foi pensar nos games (jogos eletrônicos) como a provável forma de arte mais popular nas próximas décadas.
Lembrei de um livro que comecei a ler nos meus primeiros passos na pesquisa de narrativas para jogos, The Art of Computer Game Design, de Chris Crawford, dedicava o primeiro capítulo inteiro a justificar a opinião de que o design de jogos pra computador era, de fato, uma forma de arte. Os argumentos, pelo que me lembro, eram bem frágeis e superficiais, e acho que cairiam na mesma impertinência que algum filósofo iluminista ou hegeliano pudesse colocar hoje em dia.
Pensei, então, num artigo que escrevi para o Intercom em 2007, refletindo sobre essa transição não apenas do conceito de arte, mas da sua própria função na sociedade atual. Quem estiver a fim de ler mais detidamente um artigo escrito para um simpósio acadêmico (portanto, chato) pode clicar no link acima, mas pra resumir, eu cito alguns filósofos contemporâneos (Lebrun, Dubois, Benjamin) que falam de uma perda material da arte a partir das técnicas de reprodução (imprensa, fotografia, cinema), e da necessidade premente de se pensar em novos padrões para sistematizar a respeito de nossa leitura estética de uma obra qualquer, já que o próprio conceito de arte se encontraria em transição.
Relendo o artigo hoje de manhã, percebi que muita coisa já caducou, ou já passou pra um outro estágio de reflexão mesmo. A própria pertinência em discutir autenticidade e autoria pode ser posta em questão, sob o risco de tornar a arte um rótulo ao invés de um conceito com função social. E acho que o pensamento estético ainda merece um lugar mais profundo na nossa vida, enfim. Desta forma, cabe admitir que a leitura de uma obra em toda a sua complexidade deve pressupor alguns elementos a mais, antes inexistentes na forma de consumirmos arte. E isso passa por um monte de processos sociais, econômicos, políticos, informacionais, educacionais, comunicacionais e por aí vai.
Enquanto isso, penso no meu lugar como professor e artista. Somando esta elocubração mental prolixa às minhas recentes incursões na linguagem teatral, descobri que posso transformar minha tecnofobia num conflito estilístico que, de fato, me mova dentro dessas novas expressões que vão surgindo. Ao invés de escapar dos meus medos, refugiando-se no meu arcaismo natural, posso me confrontar com eles, ora ganhando, ora perdendo, mas sempre em diálogo. Pode ser um caminho possível (talvez o único) pra não me sentir tão fora de tempo.
Mas vou continuar escrevendo em português antigo. Old habits die hard… Paciência! E um pouco de excentricidade anciã um espírito velho como o meu pode ter, não?
5 Comments:
Muito bom, Léo. Abraço.
Adorei seu texto e a forma como você se expressa. Confesso que muito do que li aqui não são de meu domínio e mesmo assim, ou até por isso, você conseguiu chamar e prender a minha atenção. Parabéns!
Também sou partidária do seu sentimento e do de Neide Mendonça (de quem fui aluna. Não só dela, como também da filha, Márcia) com relação à reforma ortográfica. Como se o padrão para a compreensão da língua se medisse antes pela gramática que pela semântica; como se isso pudesse de certa forma permitir uma comunicação mais eficaz entre os falantes de língua portuguesa... Também tenho esse sentimento de que algo em particular em mim envelheceu, e enquanto tiver o meu tecladinho com trema, vou continuar usando (sugiro que compre logo um estoque de teclados!). :p E me pergunto como era o sentimento dos que pegaram a reforma de 71 à época e depois de passados alguns anos. Pergunta isso pra Neide e depois me conta. Será que ela teve esse sentimento contrário? Será que com o tempo isso pode ser revertido e pode virar, até, afeição? Será que um dia seremos simpatizantes da causa?
:) Beijo!
t.
hmmm... também milito a favor do transporte público. Parabéns pelo texto!
muito bom...primo vc e bom mesmo.
keep on rockin babe...
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