Estado Contemplativo
Isto pode soar um pouco nostálgico, proselitista ou selvagem. Pode escolher um, mais de um, e mesmo todos, como quiser. Ou pode substituir qualquer um deles por “sincero”. Aqui vai:
É provável que Chiara Lubich tenha sido uma das figuras mais influentes do século XX, mesmo sem ter freqüentado os spotlights dos livros de história recente ou periódicos acadêmicos e populares que legitimam as informações circulantes na cultura ocidental. Em 1943, no norte da Itália (portanto bem no meio da 2ª Grande Guerra), ela instituiu um estilo de vida que viria a inspirar a fundação de um movimento dentro da Igreja Católica, e que logo tomou proporções maiores do que a própria Igreja, manifestando-se nas mais diversas culturas e concepções – até mesmo agnósticas e ateísticas, diga-se de passagem. Ela e os seus alcançaram essa abrangência indo ao cerne da questão: o amor em suas mais diversas formas iria salvar o mundo. Inspiração cristã, mas que encontra ecos em quem tem outras fés, ou mesmo em quem não tem, especialmente quando nos abstrairmos de preconceitos nossos e alheios.
O mais interessante disso tudo é ter contribuído para uma diferente perspectiva da fé católica, por séculos tão conservadora – a fé, mais do que um mecanismo social cerceador, regulador, punitivo muitas vezes, deveria ser vista como uma atitude prática, aplicada a cada momento para a construção de um mundo melhor possível –, sem de fato fazer barulho a respeito. A própria vida, vivida de forma verdadeira, deveria fazer suas propostas e mostrar um caminho a ser seguido. Dentre tantas inspirações geradas dessa postura, uma particularmente me é cara: a contemplação. Muito já foi dito sobre isto, por concepções religiosas e humanistas. De São Tomás de Aquino a Hegel, e depois outros investigadores da apreensão da mensagem artística, há coisas belíssimas e instigantes escritas a respeito – de maneira que eu vou me resumir a uma percepção prática.
Gosto de dizer que um dos principais atributos de um artista é a capacidade de observação, do macro aos detalhes. É penetrar numa situação, extrair dela algo que é mais do que se apresenta, estar sensível às suas interpretações e a partir de então apresentar uma essência. Reler a realidade. E expressar-se em silêncio. O silêncio fala, como todos sabem, mas poucos sentem. Recolher-se para estar aberto ao outro, e sentir que há algo a dizer a respeito, ainda que seja muito pouco. E deixar que esse dito seja por sua vez contemplado e relido novamente, numa constante atitude de liberdade, aqui também vivida de forma prática. Em outras palavras, reduzir a percepção ao discurso, para que o discurso amplifique uma percepção outra. Para o artista, é entregar sua voz ao silêncio. Para o apreciador, é preencher-se desse silêncio expressivo. Quem fala é a obra, emblema do que é feito, representação em si de uma contemplação inicial que se torna uma contemplação póstuma e que inspira outras contemplações, vivas.
Preciso dizer que esse pressuposto para a atividade artística eu aprendi com Chiara. Por mais controversa que seja a minha fé, foi dessa parte da minha história que eu tirei este cerne. Nada sistematizado ou premeditado em livros ou sermões – a vida, simplesmente, fala por si. Especialmente quando paramos para contemplá-la.
Chiara morreu hoje aos 88 anos, por volta das seis horas da manhã, horário romano – era madrugada no Brasil. Fim sereno de uma vida linda, para dizer o mínimo, perfeito exemplo de uma legítima contemplação ativa. Grazie di tutto, amica, sorella, madre.
E che tutti siano uno.
É provável que Chiara Lubich tenha sido uma das figuras mais influentes do século XX, mesmo sem ter freqüentado os spotlights dos livros de história recente ou periódicos acadêmicos e populares que legitimam as informações circulantes na cultura ocidental. Em 1943, no norte da Itália (portanto bem no meio da 2ª Grande Guerra), ela instituiu um estilo de vida que viria a inspirar a fundação de um movimento dentro da Igreja Católica, e que logo tomou proporções maiores do que a própria Igreja, manifestando-se nas mais diversas culturas e concepções – até mesmo agnósticas e ateísticas, diga-se de passagem. Ela e os seus alcançaram essa abrangência indo ao cerne da questão: o amor em suas mais diversas formas iria salvar o mundo. Inspiração cristã, mas que encontra ecos em quem tem outras fés, ou mesmo em quem não tem, especialmente quando nos abstrairmos de preconceitos nossos e alheios.
O mais interessante disso tudo é ter contribuído para uma diferente perspectiva da fé católica, por séculos tão conservadora – a fé, mais do que um mecanismo social cerceador, regulador, punitivo muitas vezes, deveria ser vista como uma atitude prática, aplicada a cada momento para a construção de um mundo melhor possível –, sem de fato fazer barulho a respeito. A própria vida, vivida de forma verdadeira, deveria fazer suas propostas e mostrar um caminho a ser seguido. Dentre tantas inspirações geradas dessa postura, uma particularmente me é cara: a contemplação. Muito já foi dito sobre isto, por concepções religiosas e humanistas. De São Tomás de Aquino a Hegel, e depois outros investigadores da apreensão da mensagem artística, há coisas belíssimas e instigantes escritas a respeito – de maneira que eu vou me resumir a uma percepção prática.
Gosto de dizer que um dos principais atributos de um artista é a capacidade de observação, do macro aos detalhes. É penetrar numa situação, extrair dela algo que é mais do que se apresenta, estar sensível às suas interpretações e a partir de então apresentar uma essência. Reler a realidade. E expressar-se em silêncio. O silêncio fala, como todos sabem, mas poucos sentem. Recolher-se para estar aberto ao outro, e sentir que há algo a dizer a respeito, ainda que seja muito pouco. E deixar que esse dito seja por sua vez contemplado e relido novamente, numa constante atitude de liberdade, aqui também vivida de forma prática. Em outras palavras, reduzir a percepção ao discurso, para que o discurso amplifique uma percepção outra. Para o artista, é entregar sua voz ao silêncio. Para o apreciador, é preencher-se desse silêncio expressivo. Quem fala é a obra, emblema do que é feito, representação em si de uma contemplação inicial que se torna uma contemplação póstuma e que inspira outras contemplações, vivas.
Preciso dizer que esse pressuposto para a atividade artística eu aprendi com Chiara. Por mais controversa que seja a minha fé, foi dessa parte da minha história que eu tirei este cerne. Nada sistematizado ou premeditado em livros ou sermões – a vida, simplesmente, fala por si. Especialmente quando paramos para contemplá-la.
Chiara morreu hoje aos 88 anos, por volta das seis horas da manhã, horário romano – era madrugada no Brasil. Fim sereno de uma vida linda, para dizer o mínimo, perfeito exemplo de uma legítima contemplação ativa. Grazie di tutto, amica, sorella, madre.
E che tutti siano uno.