Realidade Suspeita
Faz uns dois anos mais ou menos, na ocasião do lançamento no Recife do documentário Pro dia nascer feliz (2005), o diretor João Jardim se viu diante de uma pergunta inusitada: uma espectadora, impressionada com a articulação discursiva das crianças entrevistadas no filme, interrogou-lhe qual teria sido o critério para definir o espontâneo e o planejado nos textos do filme, certa de que ele detinha o controle da verbalização dos personagens. Ele respondeu que tudo no filme era espontâneo, e que seu trabalho foi simplesmente dar coesão ao discurso através da montagem.
Pouco tempo antes, o filme O fim e o princípio (2005), de Eduardo Coutinho, havia estreado na mesma sala, também contando com a participação do diretor num debate após a exibição. Enquanto o filme de Jardim apresentava uma temática clara, um exame crítico e didático sobre o estado do ensino fundamental no Brasil, o documentário de Coutinho falava de um tema mais abrangente e mais livre, expondo a comunidade de parentes idosos no interior da Paraíba mais como uma chave de leitura do que propriamente um foco temático. No debate que se seguiu, de fato, Coutinho admitiu que estava mais interessado na “dramaticidade” dos entrevistados diante da câmera do que propriamente na construção de um discurso temático ou didático. (Esse ponto de vista, por sinal, é radicalizado no seu mais recente trabalho, Jogo de cena, no ano passado)
Mais ou menos na mesma época, estava em exibição nos cinemas brasileiros um documentário cubano chamado Suíte Havana (2003), de Fernando Pérez. Sobre um tema musical constante, vários personagens apresentam suas rotinas e anseios ao público, claramente num jogo expositivo em muito similar a um reality show. Apesar de uma evidente intervenção estética e expressiva (seja na decupagem de cada uma das cenas, ou mesmo na performance das pessoas retratadas), o fato dos personagens interpretarem “eles mesmos” deu à peça uma conotação de conexão com a realidade, o que, unindo-se à intenção do realizador, terminou por caracterizar o filme como um documentário.
Estes três exemplos mostram a dificuldade de se encontrar uma característica específica do gênero documentário nos dias de hoje; muito tem-se discutido sobre o que, de fato, diferencia um filme documentário de uma ficção. Algumas chegam a desconsiderar qualquer diferenciação de gênero, propondo uma quebra total de limites conceituais entre um e outro: elementos dramáticos e expressivos, sempre presentes, vêm sendo mais percebidos na medida em que o documentário abandona uma forma disfarçada de discurso autônomo para admitir um estilo proposto pelo realizador. Essa atitude expressiva desmascara a ilusão de que o discurso do documentário é um reflexo imparcial da realidade. Ao mesmo tempo, coloca em cheque a própria existência do termo “documentário”, pois abre espaço para uma visão restrita aos elementos dramáticos.
As poucas discussões sobre o assunto normalmente levantam pontos frágeis, colocando a natureza da linguagem documental numa condição de assumir um discurso reflexivo, auto-referente, metalingüístico. Bom, a ficção também usa dessa reflexividade muitas vezes, inclusive dentro de uma forma convencionalmente própria a um documentário, simulando um discurso de realidade que leva o público a se lembrar do outro gênero. Se tradicionalmente, ficção e documentário são termos opostos, neste momento histórico eles parecem estar cada vez mais mesclados. Essa troca de perspectivas no nível da construção do discurso, no entanto, parece mais atribuída a uma escolha estilística do que propriamente uma convergência conceitual: há, claramente, a intenção de usar elementos de estilo de um gênero no outro, com pretensões expressivas distintas.
Basta pensar em filmes como Ilha das Flores (1989)¸de Jorge Furtado, e A bruxa de Blair (1999), de Daniel Myrick e Eduardo Sánchez. No primeiro caso, para expor um certo extrato da realidade para o público (classicamente, uma atitude atribuída ao documentarista), o realizador usa de uma forma literária, narrativa e descritiva, com uma complexidade discursiva humorística que se distancia formalmente do documentário convencional, confundindo-o com uma ficção ou, num ponto conceitual mais próximo, uma crônica assumida. Já no segundo, os realizadores se valeram de elementos de linguagem típicos do documentário para dar a uma trama ficcional o status de algo “real”, acrescentando-lhe uma tensão dramática que talvez nunca estivesse presente na trama em si, não fosse essa conotação de que o fato haveria ocorrido. A reflexividade, no caso, se torna uma metalinguagem de si mesma, e funciona mais como elemento de construção dramática e menos como um limiar conceitual de gêneros.
O que me faz remeter à tal experiência, antecipada no post anterior, que me inspirou a postar este documentário. Semana passada li, na Época, por sugestão de uma amiga, a matéria sobre um menino que se suicidou com o auxílio de chatrooms e websites. Ela me chamou a atenção justamente porque havia visto meu filme de 2004, TheLastNote.com (quem tiver curiosidade e não se incomodar com a tela pequena, pode vê-lo em http://www.portacurtas.com.br/Filme.asp?Cod=1897), que fala justamente de um serviço na internet para pessoas que desejam se suicidar. O roteiro havia sido escrito em 2002 e era uma obra de ficção, eu pensando ingenuamente na coisa mais cínica que pudesse haver na web neste processo de mercantilização e perda total de intimidade a que estamos expostos no nosso tempo. À parte o fato de que tais chatrooms e sites já existiam até antes do roteiro, fiquei pensando em como a ficção antevê formas documentais, e como nossas fronteiras gerais (não apenas em conceitos de gêneros artísticos) estão cada vez mais frágeis e diluídas.
* Uma ressalva também à matéria em si: acho impressionante que a discussão tenha simplesmente girado em torno de uma moralidade que remete a tempos e padrões anteriores. Preocupava-se em incriminar as pessoas que estavam conectadas e tentando, ingenuamente ou não, ajudar o menino a se matar – sem se levantar o ponto de que elas próprias poderiam também estar precisando de atenção e compreensão. Acho que a moral ainda é válida, e apenas útil para a sociedade se for rígida, assim como a ética como conhecemos, porém a análise jornalística de uma problemática desse tipo não pode ser tão unilateral, mesmo que seja necessário se tomar partido de algo – estamos, no entanto, em tempos de diálogos também. Vale mais, me parece, estabelecer os pontos cruciais da questão e abrir pra discussão, aprofundando nossa própria opinião sobre as coisas.
Pouco tempo antes, o filme O fim e o princípio (2005), de Eduardo Coutinho, havia estreado na mesma sala, também contando com a participação do diretor num debate após a exibição. Enquanto o filme de Jardim apresentava uma temática clara, um exame crítico e didático sobre o estado do ensino fundamental no Brasil, o documentário de Coutinho falava de um tema mais abrangente e mais livre, expondo a comunidade de parentes idosos no interior da Paraíba mais como uma chave de leitura do que propriamente um foco temático. No debate que se seguiu, de fato, Coutinho admitiu que estava mais interessado na “dramaticidade” dos entrevistados diante da câmera do que propriamente na construção de um discurso temático ou didático. (Esse ponto de vista, por sinal, é radicalizado no seu mais recente trabalho, Jogo de cena, no ano passado)
Mais ou menos na mesma época, estava em exibição nos cinemas brasileiros um documentário cubano chamado Suíte Havana (2003), de Fernando Pérez. Sobre um tema musical constante, vários personagens apresentam suas rotinas e anseios ao público, claramente num jogo expositivo em muito similar a um reality show. Apesar de uma evidente intervenção estética e expressiva (seja na decupagem de cada uma das cenas, ou mesmo na performance das pessoas retratadas), o fato dos personagens interpretarem “eles mesmos” deu à peça uma conotação de conexão com a realidade, o que, unindo-se à intenção do realizador, terminou por caracterizar o filme como um documentário.
Estes três exemplos mostram a dificuldade de se encontrar uma característica específica do gênero documentário nos dias de hoje; muito tem-se discutido sobre o que, de fato, diferencia um filme documentário de uma ficção. Algumas chegam a desconsiderar qualquer diferenciação de gênero, propondo uma quebra total de limites conceituais entre um e outro: elementos dramáticos e expressivos, sempre presentes, vêm sendo mais percebidos na medida em que o documentário abandona uma forma disfarçada de discurso autônomo para admitir um estilo proposto pelo realizador. Essa atitude expressiva desmascara a ilusão de que o discurso do documentário é um reflexo imparcial da realidade. Ao mesmo tempo, coloca em cheque a própria existência do termo “documentário”, pois abre espaço para uma visão restrita aos elementos dramáticos.
As poucas discussões sobre o assunto normalmente levantam pontos frágeis, colocando a natureza da linguagem documental numa condição de assumir um discurso reflexivo, auto-referente, metalingüístico. Bom, a ficção também usa dessa reflexividade muitas vezes, inclusive dentro de uma forma convencionalmente própria a um documentário, simulando um discurso de realidade que leva o público a se lembrar do outro gênero. Se tradicionalmente, ficção e documentário são termos opostos, neste momento histórico eles parecem estar cada vez mais mesclados. Essa troca de perspectivas no nível da construção do discurso, no entanto, parece mais atribuída a uma escolha estilística do que propriamente uma convergência conceitual: há, claramente, a intenção de usar elementos de estilo de um gênero no outro, com pretensões expressivas distintas.
Basta pensar em filmes como Ilha das Flores (1989)¸de Jorge Furtado, e A bruxa de Blair (1999), de Daniel Myrick e Eduardo Sánchez. No primeiro caso, para expor um certo extrato da realidade para o público (classicamente, uma atitude atribuída ao documentarista), o realizador usa de uma forma literária, narrativa e descritiva, com uma complexidade discursiva humorística que se distancia formalmente do documentário convencional, confundindo-o com uma ficção ou, num ponto conceitual mais próximo, uma crônica assumida. Já no segundo, os realizadores se valeram de elementos de linguagem típicos do documentário para dar a uma trama ficcional o status de algo “real”, acrescentando-lhe uma tensão dramática que talvez nunca estivesse presente na trama em si, não fosse essa conotação de que o fato haveria ocorrido. A reflexividade, no caso, se torna uma metalinguagem de si mesma, e funciona mais como elemento de construção dramática e menos como um limiar conceitual de gêneros.
O que me faz remeter à tal experiência, antecipada no post anterior, que me inspirou a postar este documentário. Semana passada li, na Época, por sugestão de uma amiga, a matéria sobre um menino que se suicidou com o auxílio de chatrooms e websites. Ela me chamou a atenção justamente porque havia visto meu filme de 2004, TheLastNote.com (quem tiver curiosidade e não se incomodar com a tela pequena, pode vê-lo em http://www.portacurtas.com.br/Filme.asp?Cod=1897), que fala justamente de um serviço na internet para pessoas que desejam se suicidar. O roteiro havia sido escrito em 2002 e era uma obra de ficção, eu pensando ingenuamente na coisa mais cínica que pudesse haver na web neste processo de mercantilização e perda total de intimidade a que estamos expostos no nosso tempo. À parte o fato de que tais chatrooms e sites já existiam até antes do roteiro, fiquei pensando em como a ficção antevê formas documentais, e como nossas fronteiras gerais (não apenas em conceitos de gêneros artísticos) estão cada vez mais frágeis e diluídas.
* Uma ressalva também à matéria em si: acho impressionante que a discussão tenha simplesmente girado em torno de uma moralidade que remete a tempos e padrões anteriores. Preocupava-se em incriminar as pessoas que estavam conectadas e tentando, ingenuamente ou não, ajudar o menino a se matar – sem se levantar o ponto de que elas próprias poderiam também estar precisando de atenção e compreensão. Acho que a moral ainda é válida, e apenas útil para a sociedade se for rígida, assim como a ética como conhecemos, porém a análise jornalística de uma problemática desse tipo não pode ser tão unilateral, mesmo que seja necessário se tomar partido de algo – estamos, no entanto, em tempos de diálogos também. Vale mais, me parece, estabelecer os pontos cruciais da questão e abrir pra discussão, aprofundando nossa própria opinião sobre as coisas.
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