23 maio 2007

Uma incursão ficcional...

Diante da problemática irremediável do tempo, terminei apelando para meus arquivos de ficção como um paliativo à minha falta de assiduidade autoral reflexiva. Boa leitura!...


AS CRIATURAS DA NOITE - Parte 2


Um dia, Marco se cansou – mais do que de costume - de sonhar toda noite com coisas que nunca aconteceriam. Resolveu fazer uma greve de sono.

Parecia uma boa idéia. As pessoas, naquela época, faziam greve de tudo. Se estavam insatisfeitas com o trabalho, não demorava muito e tudo parava. Se alguém ficava insatisfeito com a vida, logo ameaçava não comer mais nada até alguma providência ser tomada. Sendo assim, o que haveria demais em se deixar de dormir simplesmente, se justamente os sonhos, inevitáveis às condições de repouso, eram o problema?

Pois Marco fez assim mesmo. Ficou dias e dias sem dormir. É claro que depois de algum tempo a coisa foi ficando complicada. Quer dizer, apesar de toda a reflexão, fundamentação e clareza de exigências, Marco não podia deixar de dar umas cochiladas. Afinal de contas, era humano como todo mundo. E os sonhos, que não eram bobos nem nada, aproveitavam justamente esses deslizes para esboçar pequenas incursões.

Mas Marco era persistente. E fiel às suas idéias. Esses momentos não duravam muito, e mal o sonho estava armado, Marco já acordava, frustrando horas e horas de sono perdido (para os sonhos e para ele).

Páreo duro, esse, de Marco contra os sonhos. E a coisa foi se acirrando, se acirrando, sem nenhuma negociação, por nenhuma das partes interessadas – e desinteressadas. E Marco foi insistindo na sua greve até não precisar mais dormir, e viver seus sonhos na vida real.

E aí foi um problema, porque nem todo mundo estava a fim de saber dos sonhos de Marco, e Marco, que não dormia pra não ter que ver seus sonhos, tinha que lidar com eles todos os dias, enquanto estava acordado. Ou seja, sonhava sem descansar, o que não era em absoluto de seu interesse.

Foi então que Marco teve a melhor idéia que ele poderia ter: dormir. E os sonhos ficavam sem saber o que fazer, sem Marco para vê-los na vida real. E resolveram se recolher ao sono de novo. Só que isto acontecia justamente quando Marco estava acordando.

E foi assim pelo resto dos dias: os sonhos perseguindo Marco, que nunca estava dormindo ou acordado para eles. E Marco, até hoje, vive sem sonhar. Ou melhor, fugindo dos seus sonhos.

10 Comments:

Blogger d meira said...

eu tenho um jeito de jogar sonhos fora. "que" eu conhecesse marco eu ensinava.

adorei o texto, faz mais disso por aqui!

beijos, d.

7:43 AM  
Blogger Paulo de Pontes said...

Nossa Leo adorei essa coisa de sonho acordado perseguindo Marco. Tenho um pensamento que me persegue tb desde criança. Será que meus sonhos teriam uma boa bilheteria se um dia eles virassem filme? Pois é... e esse seu texto tem muito a ver com isso que me persegue a muito, muito tempo! Gostei... tem mais?

8:58 AM  
Blogger CORES, IMAGENS E PALAVRAS...POESIA. said...

Muito bom!
Até quando Marcos deixará de fugir dos seus sonhos? eu perdi a conta de quanto tempo faz que fujo dos meus...será que esse caminho tem volta? me ajuuuuuuuda!

Beijo, Luluca.

12:51 PM  
Blogger Marcello said...

Esse texto é um desabafo? Um mea-culpa? Só fiquei curioso... acho que todo texto é um pouco, não? Existe mesmo ficção? Mesmo quando criei a peça mais desconexa e louca que podia, sem querer traçar paralelo com nada que fosse consciente, a medida que o tempo foi passando comecei a ver minha avó, minha infãncia, medos, sonhos, hehehehe... a pergunta que fiz no início não almeja a dissecação de sua personalidade mas o questionamento (de um autor para outro) sobre a "Ficção"... será ela a mais crua verdade? Será a ficção a maior verdade de todos nós? A máscara que revela... a confissão anõnima... acho que era Kabir (um santo-poeta Indiano) que dizia: Quando fecho os olhos (contemplando, meditando, sonhando) estou acordado e quando as pessoas estão vivendo suas vidas, de olhos abertos, na verdade elas estão domrindo... Abraços.

1:03 PM  
Anonymous Anônimo said...

meu dilema é parecido com o de Marco..só que ao invés de fugir dos sonhos, tento fugir da realidade...

8:27 PM  
Blogger hjahag said...

Lindo texto!
Vou esperar pra ver o dia em que Marcos se preocupará em encontrar os significados pros seus sonhos, os dormidos e os acordados.
Quem sabe vira um filme!

Beijo, Diana.

7:26 AM  
Blogger vinicius gouveia said...

Cara, eu te vi há um tempão no I Festival de Making Off (era algo assim, não lembro). Gostei muito da sua posição no debate, mostrando que dava o máximo de si em sesu projetos. Mas, só isso, poderia parecer insuficiente, para as outras pessoas. Fuçando o orkut, achei teu blog. Parabéns pelos textos, acho que já li algo no mesmo estilo em um livro ou outro. Ou não. Não sei. Acho que, ainda, não li nem a metade das coisas que deveria ler. Mas, enfim, abraços.

["Eu espero que ele transponha minhas defesas e reservas, que ele me fale diretamente e de forma forte, sem deixar questões pela metade, sem me empurrar uma ideologia goela abaixo e, mais importante, sem me impedir de pensar sobre ele. Sim, acho que o filme é também um convite ao pensamento. Não sempre um pensamento crítico ou técnico, mas sobretudo AFETIVO.", era isso o que eu tantava dizer as pessoas, mas nunca consegui.]

ps.: desculpe pelo comentário longo e esse blog que eu to inscrito é sobre cinema, mas não tem nenhum post meu, ainda.

12:34 PM  
Blogger Wagner Bezerra said...

sonhar é bom demais...não vale a pena deixar de sonhar, o homem é um ser desejante e o sonho precisa existir para que não afogue no finito mais rápidamente...se é que me entende?!...heheh gostei do texto =D

abraço!

11:04 AM  
Blogger Vivien Morgato : said...

delicioso texto.

7:59 PM  
Blogger amandagabriel said...

pior a gente que sonha acordado. Marco devia aprender a colocar o inconsciente dele no lugar feito eu fiz com o meu essa noite...

11:36 PM  

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