27 outubro 2006

Filosofia Popular Brasileira

Sobre o direito de compartilhar pensamentos


Ia eu voltando de uma palestra em Olinda, no banco de carona do carro da instituição que me fez o convite. A conversa com o motorista, Seu Valdir, estava àquele ponto às voltas sobre partidas de futebol, assunto que me coloca numa posição mais de observador do que contribuinte de idéias. De repente, aquela pequena pausa de esgotamento de um assunto, o silêncio dominando um instante tão infinito quanto breve, até que alguém puxe o próximo tópico. No caso, Seu Valdir foi mais rápido do que eu, atacando com a frase “O tempo é um negócio engraçado”. E após o “É...” ritualístico da minha parte, ele prosseguiu falando do tempo que gasta sentado naquele mesmo banco, e da distância diária que percorre por dia, não tanto queixando-se e nem achando bom, mas apenas comentando, no fundo, sobre a relatividade das coisas. A minha atenção, reflexo do hábito social entre dois interlocutores, fez com que eu mesmo não me desse conta do tempo e logo me encontrasse diante de casa, despedindo-me de Seu Valdir, agradecendo a chegada segura e a conversa agradável e desejando-lhe uma boa noite, uma boa semana, uma boa vida.

Lembrei-me dessa experiência ao retomar o contato com um de meus ídolos da pós-adolescência (ou seja, minha vida como aluno de graduação universitária): o filósofo alemão Walter Benjamin. O que mais me atraía nele, desde aquela época, era a forma sem amarras como discorria sobre questões da percepção estética, muito focado nas relações entre obra, autor e espectador. De fato, muitas das questões da chamada pós-modernidade receberam sua atenção especial num momento histórico em que esse conceito nem existia. Mas, enfim, gostava dessa forma de pensar e escrever sem necessariamente recorrer às instituições formais do pensamento – uma “filosofia marginal”, como alguns chamam. Percebi, por exemplo, que é basicamente o que faço aqui neste espaço, falando de coisas sem citar fontes bibliográficas de reflexão, muitas vezes porque elas não existem senão na observação cotidiana.

Aí, pensando demais como de costume, fiquei ligando o Benjamin ao Seu Valdir. O primeiro lançou mão da sua capacidade de instrumentalizar seu pensamento e um talento incrível para escrever para se tornar um filósofo, só tardiamente reconhecido pela academia. O segundo, é motorista, e algum biógrafo ocasional talvez nos fale mais de como ele chegou até ali, muito embora isso seja improvável – vivemos numa cultura glamourosa, extremamente seletiva em quem considerar de interesse público. Mas de toda forma, no momento em que Seu Valdir disse “O tempo é um negócio engraçado”, ele estava se equiparando a Benjamin, e a Baudrillard, Foucault, Santo Agostinho e Aristóteles, e a tantos outros filósofos. Baseado na observação, reflexão e impressão acerca do mundo que está ao seu redor, Seu Valdir postulou uma verdade específica, ou, de forma dialética, estabeleceu uma síntese, abrindo a discussão e passando a bola para a intervenção do seu interlocutor, no caso, eu, que por medo de mim mesmo preferi calar, temendo um debate mais complexo.

Mas a atitude de Seu Valdir não é isolada. Observando bem, todo mundo filosofa: pensa sobre sua realidade, elabora conceitos, estabelece uma chave de leitura própria. Às vezes faz isso de forma sistemática, mais fácil de ser compartilhada e, sendo tão complexa quanto coerente enquanto argumentação, bastaria encontrar as tais referências bibliográficas para obter reconhecimento acadêmico. Mas na maioria das vezes não. E essa filosofia, que existe à margem do reconhecimento acadêmico – e que talvez assim deva permanecer, pois, no fim das contas, tudo precisa de parâmetros para existir – vai sobrevivendo e sendo compartilhada de forma no mínimo interpessoal.

Pensei em escrever um manifesto sobre essa FPB (Filosofia Popular Brasileira, usando o termo mais como trocadilho retórico do que propriamente com pretensões acadêmicas). Mas isso seria ir contra a própria razão de existência desse tipo de filosofia, a de não ter sistematização. Mais do que uma filosofia marginal, a FPB é uma filosofia amadora: pensa-se apenas pelo prazer, pela necessidade, pelo hábito ou, simplesmente, pelo uso pleno da nossa liberdade. De forma que a partir de hoje, seguindo o exemplo de Seu Valdir, vou me considerar um filósofo amador. Pelo menos, até passar por um curso profissionalizante ou um supletivo, e comece a pensar nisto como profissão. Mas por enquanto, deixa assim que tá massa.

04 outubro 2006

Previsão do Tempo

Dando continuidade às costumeiras especulações sobre o futuro em tempos pós-modernos (ou como preferirem chamar esta época maluca), eu me peguei chegando a conclusões meio estranhas ultimamente. Sobretudo neste contexto de eleições gerais, este cívico dever de exercer um direito, contraditório em si somente em países como o Brasil. Anyway, fiquei pensando sobre onde essa coisa toda vai parar dentro de uma lógica mais ou menos tosca, hiperbolizando processos que estão acontecendo agora.

Tenho falado aqui sobre tecnofobia, convivência e convergência virtual, seres humanos pós-orgânicos e tudo o mais que nossos antigos futuros nunca sonharam. Seria natural assimilar essa tecnocracia sutil e paulatinamente nas nossas vidas, e nossas relações dependendo cada vez mais dela, e redefinindo na verdade nossos parâmetros de pensamento e convivência. É um processo que já está acontecendo, como muitos já sabem e já vivem, enfim.

Por outro lado, uma outra coisa me veio à cabeça quando soube que o mais votado deputado estadual em Pernambuco é um popular pastor evangélico. Não me interpretem mal, não quero criticar a fé de ninguém – mas sempre achei questionável essa coisa de usar a fé para conduzir uma carreira política. A história já provou várias vezes que isso pode se tornar um perigoso equívoco. E, de toda forma, pautar uma plataforma política valendo-se apenas da fé das pessoas me parece tão grave quanto declarar-se representante inquestionável da ética, sem apresentar propostas, fatos ou atitudes em favor disso.

De um jeito ou de outro, fico pensando em outra parcela da população brasileira que engrossa suas fileiras e se sofistica cada vez mais em seus mecanismos: os crentes nessa fé religiosa cega. Ela se contrapõe, de certa forma, àquele modelo humano tecnocrático, que redimensiona, relativiza e rediscute as relações sociais. Mesmo tendo acesso à tecnologia e aos meios diversos de acesso a cyberculturas, essa ideologia neocristã termina formando um universo autosuficiente, com cultura própria, regras próprias e condutas próprias – cultura, regras e condutas que, não raramente, restringem certas liberdades permitidas por aquela outra sociedade, a tecnocrática.

Será que nossa versão oficial de futuro apocalíptico vai ser essa? O velho conflito entre fé cega e ciência cega? Será que estamos falando de uma perspectiva mágica e religiosa voltando a se contrapor a uma visão técnica e cética do mundo?

Tava pensando nisso quando o ônibus (de vez em quando essas reflexões ocorrem dentro dele, como vocês sabem) parou no sinal, numa parte da cidade em que sempre rola um engarrafamento básico. Um carro destes que só funciona com som alto destilava uma música “popular” falando algo sobre “raparigas”, “cabarés” e outros termos que dizem a mesma coisa: um macho querendo comer uma fêmea, enfim, sem usar de sutileza ou elegância para isso, mas valendo-se apenas do contexto hegemônico de gênero em que vivemos. Seria uma terceira corrente, corroborando para uma sociedade intermediária em que as mulheres só têm vez para serem submissas aos desejos dos homens.

Lembrei-me imediatamente de um artigo em que Laura Mulvey, um dos maiores nomes no estudo de cinema da atualidade, descrevia o prazer estético da experiência cinematográfica como uma repetição de processos sexuais, postulados anteriormente por Freud, que a fizeram chegar a uma conclusão preocupante: a mulher como objeto diante de um olhar predominantemente masculino. Mais uma forma de repressão de gênero, enfim, só que totalmente legitimada pela nossa sociedade de hoje. Ou pelas nossas sociedades de hoje. Se isso é freqüente dentro do cinema, essa forma de arte que chama à reflexão tanto quanto é item fundamental de sobrevivência cultural, avalie nos contextos demagógicos e acríticos das mídias de massa.

Vislumbrando essas possibilidades (ainda bem que se tratam apenas de possibilidades, pelo menos por enquanto), confesso que fiquei bem preocupado com o nosso mundo pós-apocalíptico. Se a hipérbole especulativa virar regra, vamos viver num mundo que nem Heinlein, Asimov ou Koontz poderiam pensar.

Parece, novamente, que a realidade imediata é capaz de superar a mais fértil imaginação.
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