Filosofia Popular Brasileira
Sobre o direito de compartilhar pensamentos
Ia eu voltando de uma palestra em Olinda, no banco de carona do carro da instituição que me fez o convite. A conversa com o motorista, Seu Valdir, estava àquele ponto às voltas sobre partidas de futebol, assunto que me coloca numa posição mais de observador do que contribuinte de idéias. De repente, aquela pequena pausa de esgotamento de um assunto, o silêncio dominando um instante tão infinito quanto breve, até que alguém puxe o próximo tópico. No caso, Seu Valdir foi mais rápido do que eu, atacando com a frase “O tempo é um negócio engraçado”. E após o “É...” ritualístico da minha parte, ele prosseguiu falando do tempo que gasta sentado naquele mesmo banco, e da distância diária que percorre por dia, não tanto queixando-se e nem achando bom, mas apenas comentando, no fundo, sobre a relatividade das coisas. A minha atenção, reflexo do hábito social entre dois interlocutores, fez com que eu mesmo não me desse conta do tempo e logo me encontrasse diante de casa, despedindo-me de Seu Valdir, agradecendo a chegada segura e a conversa agradável e desejando-lhe uma boa noite, uma boa semana, uma boa vida.
Lembrei-me dessa experiência ao retomar o contato com um de meus ídolos da pós-adolescência (ou seja, minha vida como aluno de graduação universitária): o filósofo alemão Walter Benjamin. O que mais me atraía nele, desde aquela época, era a forma sem amarras como discorria sobre questões da percepção estética, muito focado nas relações entre obra, autor e espectador. De fato, muitas das questões da chamada pós-modernidade receberam sua atenção especial num momento histórico em que esse conceito nem existia. Mas, enfim, gostava dessa forma de pensar e escrever sem necessariamente recorrer às instituições formais do pensamento – uma “filosofia marginal”, como alguns chamam. Percebi, por exemplo, que é basicamente o que faço aqui neste espaço, falando de coisas sem citar fontes bibliográficas de reflexão, muitas vezes porque elas não existem senão na observação cotidiana.
Aí, pensando demais como de costume, fiquei ligando o Benjamin ao Seu Valdir. O primeiro lançou mão da sua capacidade de instrumentalizar seu pensamento e um talento incrível para escrever para se tornar um filósofo, só tardiamente reconhecido pela academia. O segundo, é motorista, e algum biógrafo ocasional talvez nos fale mais de como ele chegou até ali, muito embora isso seja improvável – vivemos numa cultura glamourosa, extremamente seletiva em quem considerar de interesse público. Mas de toda forma, no momento em que Seu Valdir disse “O tempo é um negócio engraçado”, ele estava se equiparando a Benjamin, e a Baudrillard, Foucault, Santo Agostinho e Aristóteles, e a tantos outros filósofos. Baseado na observação, reflexão e impressão acerca do mundo que está ao seu redor, Seu Valdir postulou uma verdade específica, ou, de forma dialética, estabeleceu uma síntese, abrindo a discussão e passando a bola para a intervenção do seu interlocutor, no caso, eu, que por medo de mim mesmo preferi calar, temendo um debate mais complexo.
Mas a atitude de Seu Valdir não é isolada. Observando bem, todo mundo filosofa: pensa sobre sua realidade, elabora conceitos, estabelece uma chave de leitura própria. Às vezes faz isso de forma sistemática, mais fácil de ser compartilhada e, sendo tão complexa quanto coerente enquanto argumentação, bastaria encontrar as tais referências bibliográficas para obter reconhecimento acadêmico. Mas na maioria das vezes não. E essa filosofia, que existe à margem do reconhecimento acadêmico – e que talvez assim deva permanecer, pois, no fim das contas, tudo precisa de parâmetros para existir – vai sobrevivendo e sendo compartilhada de forma no mínimo interpessoal.
Pensei em escrever um manifesto sobre essa FPB (Filosofia Popular Brasileira, usando o termo mais como trocadilho retórico do que propriamente com pretensões acadêmicas). Mas isso seria ir contra a própria razão de existência desse tipo de filosofia, a de não ter sistematização. Mais do que uma filosofia marginal, a FPB é uma filosofia amadora: pensa-se apenas pelo prazer, pela necessidade, pelo hábito ou, simplesmente, pelo uso pleno da nossa liberdade. De forma que a partir de hoje, seguindo o exemplo de Seu Valdir, vou me considerar um filósofo amador. Pelo menos, até passar por um curso profissionalizante ou um supletivo, e comece a pensar nisto como profissão. Mas por enquanto, deixa assim que tá massa.
Ia eu voltando de uma palestra em Olinda, no banco de carona do carro da instituição que me fez o convite. A conversa com o motorista, Seu Valdir, estava àquele ponto às voltas sobre partidas de futebol, assunto que me coloca numa posição mais de observador do que contribuinte de idéias. De repente, aquela pequena pausa de esgotamento de um assunto, o silêncio dominando um instante tão infinito quanto breve, até que alguém puxe o próximo tópico. No caso, Seu Valdir foi mais rápido do que eu, atacando com a frase “O tempo é um negócio engraçado”. E após o “É...” ritualístico da minha parte, ele prosseguiu falando do tempo que gasta sentado naquele mesmo banco, e da distância diária que percorre por dia, não tanto queixando-se e nem achando bom, mas apenas comentando, no fundo, sobre a relatividade das coisas. A minha atenção, reflexo do hábito social entre dois interlocutores, fez com que eu mesmo não me desse conta do tempo e logo me encontrasse diante de casa, despedindo-me de Seu Valdir, agradecendo a chegada segura e a conversa agradável e desejando-lhe uma boa noite, uma boa semana, uma boa vida.
Lembrei-me dessa experiência ao retomar o contato com um de meus ídolos da pós-adolescência (ou seja, minha vida como aluno de graduação universitária): o filósofo alemão Walter Benjamin. O que mais me atraía nele, desde aquela época, era a forma sem amarras como discorria sobre questões da percepção estética, muito focado nas relações entre obra, autor e espectador. De fato, muitas das questões da chamada pós-modernidade receberam sua atenção especial num momento histórico em que esse conceito nem existia. Mas, enfim, gostava dessa forma de pensar e escrever sem necessariamente recorrer às instituições formais do pensamento – uma “filosofia marginal”, como alguns chamam. Percebi, por exemplo, que é basicamente o que faço aqui neste espaço, falando de coisas sem citar fontes bibliográficas de reflexão, muitas vezes porque elas não existem senão na observação cotidiana.
Aí, pensando demais como de costume, fiquei ligando o Benjamin ao Seu Valdir. O primeiro lançou mão da sua capacidade de instrumentalizar seu pensamento e um talento incrível para escrever para se tornar um filósofo, só tardiamente reconhecido pela academia. O segundo, é motorista, e algum biógrafo ocasional talvez nos fale mais de como ele chegou até ali, muito embora isso seja improvável – vivemos numa cultura glamourosa, extremamente seletiva em quem considerar de interesse público. Mas de toda forma, no momento em que Seu Valdir disse “O tempo é um negócio engraçado”, ele estava se equiparando a Benjamin, e a Baudrillard, Foucault, Santo Agostinho e Aristóteles, e a tantos outros filósofos. Baseado na observação, reflexão e impressão acerca do mundo que está ao seu redor, Seu Valdir postulou uma verdade específica, ou, de forma dialética, estabeleceu uma síntese, abrindo a discussão e passando a bola para a intervenção do seu interlocutor, no caso, eu, que por medo de mim mesmo preferi calar, temendo um debate mais complexo.
Mas a atitude de Seu Valdir não é isolada. Observando bem, todo mundo filosofa: pensa sobre sua realidade, elabora conceitos, estabelece uma chave de leitura própria. Às vezes faz isso de forma sistemática, mais fácil de ser compartilhada e, sendo tão complexa quanto coerente enquanto argumentação, bastaria encontrar as tais referências bibliográficas para obter reconhecimento acadêmico. Mas na maioria das vezes não. E essa filosofia, que existe à margem do reconhecimento acadêmico – e que talvez assim deva permanecer, pois, no fim das contas, tudo precisa de parâmetros para existir – vai sobrevivendo e sendo compartilhada de forma no mínimo interpessoal.
Pensei em escrever um manifesto sobre essa FPB (Filosofia Popular Brasileira, usando o termo mais como trocadilho retórico do que propriamente com pretensões acadêmicas). Mas isso seria ir contra a própria razão de existência desse tipo de filosofia, a de não ter sistematização. Mais do que uma filosofia marginal, a FPB é uma filosofia amadora: pensa-se apenas pelo prazer, pela necessidade, pelo hábito ou, simplesmente, pelo uso pleno da nossa liberdade. De forma que a partir de hoje, seguindo o exemplo de Seu Valdir, vou me considerar um filósofo amador. Pelo menos, até passar por um curso profissionalizante ou um supletivo, e comece a pensar nisto como profissão. Mas por enquanto, deixa assim que tá massa.