Mundo Errado
No que se refere à idade das pessoas, costuma-se dizer que o que vale é o espírito. De uns tempos pra cá, tenho me sentido meio velho. Na verdade, caquético e ranzinza, pra ser mais preciso. O que me faz pensar que o problema sou eu, e não o mundo – pois é, tenho tido crises de humildade também.
Já escrevi neste espaço sobre o perigo de gerar expectativas sobre um filme, sobretudo adaptações (vide os posts Grandes Expectativas e A máscara apenas sorri), e tenho me flagrado meio intolerante com algumas das coisas recentes que tenho visto. Novamente, uma outra adaptação de quadrinhos, desta vez evidentemente blockbuster, X-Men 3 – O confronto final, de Brett Ratner. O que me chamou a atenção é que não há em torno do filme uma unanimidade negativa como no caso de Código Da Vinci, de Ron Howard – muito pelo contrário, muitos amigos meus, inclusive com gostos afins, gostaram muito do que viram. Enquanto via o filme, porém, não pude deixar de me aborrecer (muito!!!) com as costumeiras frases feitas e tiradas cômicas no meio de uma situação dramática significativa.
Mas todos já conhecem bem o gênero blockbuster de ação e sabem que isto faz parte. Então, por que o meu evidente desconforto? Bom, veio-me à cabeça um outro exemplo, este até mais blockbuster ainda: Tróia, de Wolfgang Petersen. O filme é, na opinião deste espírito antigo que insiste em falar, fuleragem do começo ao fim – com um notável intervalo, porém, que vale todo o sacrifício do resto do filme; uma cena esplêndida tanto do ponto-de-vista técnico quanto dramático mesmo: a fatídica batalha entre Heitor e Aquiles (vividos, respectivamente, por Eric Bana e Brad Pitt). Quem ainda não viu o filme e deseja saborear a surpresa não-existente do desfecho, pode pular o próximo parágrafo.
Aquiles, o maior guerreiro de todos os tempos (alguns diriam “depois de Jack Bauer”, talvez), imbatível em qualquer combate, se porta diante dos muros de Tróia, reivindica com ódio saindo pelos poros do corpo seu direito à vingança pela morte do seu irmão nas mãos de seu oponente mais habilidoso, Heitor. Este último, figura fundamental para a defesa de seu povo, sabe que o direito é lícito e que não tem outra escolha senão aceitar o desafio, mesmo sabendo estar caminhando para a morte certa: nenhuma criatura mortal teria a menor chance num duelo individual com Aquiles. De fato, é o que acontece: mesmo apresentando uma resistência admirável, Heitor é morto por um Aquiles ileso, no máximo um pouquinho mais suado.
O que é interessante notar é que nesta batalha não são feitas concessões: sem piadinhas, sem alívios, sem a mínima incoerência no sentido de dar as costumeiras esperanças ao público, muito embora este esteja aparentemente desesperado por elas. A cena é montada como deve ser: intensa, séria, definitiva, caminha numa única e inevitável direção. Ninguém, personagens ou espectadores, está a salvo, numa situação confortável. É isso que me fez pensar que valeu a pena pagar o ingresso e resistir ao resto do filme. Ponto pro Petersen (para Romero, talvez?).
Comparando com outros filmes do gênero, tipo X-Men ou, como já escrevi, Batman Begins (certamente um filme melhor do que todos os exemplos aqui citados), de Chris Nolan, vemos que a problemática se baseia nessa lógica, essa do conforto. É como se a platéia só pudesse ficar tensa até um certo ponto, a partir dali coisas ruins poderiam acontecer e ela poderia começar a babar e querer morder-se a si mesma, sei lá - o que equivaleria a sair da sala ou não indicar o filme a um amigo, prejudicando sua bilheteria.
Interessante como a imagem da arte está vinculada ao entretenimento, que por sua vez está vinculada ao conforto. Quando Picasso exibe para Braque a sua Les Demoiselles d’Avigon, pintura que inaugura o cubismo, este reage com nojo. Logo, ao observar e tentar entender melhor, percebe a beleza por trás da forma bizarra, e se torna o outro grande nome do estilo pictórico. O mecanismo de procurar atribuir sentido ao que a obra oferece termina dando a Braque uma possibilidade ímpar não apenas de se expressar, mas de entender o mundo por um outro ponto-de-vista, e de elaborar para si um outro meio de percepção de beleza.
Neste caso, um hábito de tentar ver algo de uma maneira mais complexa termina, ao contrário do que pensa a maioria, aumentando as possibilidades de apreciar uma obra ao invés de restringí-las. É claro que, numa outra chave de leitura, pode-se pensar o contrário: tudo que não seja minimamente complexo termina soando banal, lugar-comum, medíocre, raso e, portanto, ruim. Talvez seja isso que esteja acontecendo comigo, no fim das contas. Fico eu aqui, nadando contra a maré, achando que os filmes estão cada vez piores, os programas de TV cada vez piores, os breaks comerciais e outdoors cada vez piores, enquanto que, dentro da lógica “é disso que o povo gosta”, tudo isso termina sendo a inegável regra, e não a execrável exceção.
Aí fico sonhando com um mundo onde talento redunda em sucesso, onde a lógica é do compartilhamento e não da imposição, do respeito à diferença e não da obrigatoriedade da padronização, enfim. Um mundo onde a arte é feita sem frases feitas fora de contexto, sem melodramas desnecessários, sem o consumo acrítico de uma ideologia maliciosamente entranhada em cada peça de comunicação. Um mundo onde as pessoas consomem arte, e não apenas se distraem com ela.
E, é claro, um mundo sem rabugice tipo esta minha, enfim.
Já escrevi neste espaço sobre o perigo de gerar expectativas sobre um filme, sobretudo adaptações (vide os posts Grandes Expectativas e A máscara apenas sorri), e tenho me flagrado meio intolerante com algumas das coisas recentes que tenho visto. Novamente, uma outra adaptação de quadrinhos, desta vez evidentemente blockbuster, X-Men 3 – O confronto final, de Brett Ratner. O que me chamou a atenção é que não há em torno do filme uma unanimidade negativa como no caso de Código Da Vinci, de Ron Howard – muito pelo contrário, muitos amigos meus, inclusive com gostos afins, gostaram muito do que viram. Enquanto via o filme, porém, não pude deixar de me aborrecer (muito!!!) com as costumeiras frases feitas e tiradas cômicas no meio de uma situação dramática significativa.
Mas todos já conhecem bem o gênero blockbuster de ação e sabem que isto faz parte. Então, por que o meu evidente desconforto? Bom, veio-me à cabeça um outro exemplo, este até mais blockbuster ainda: Tróia, de Wolfgang Petersen. O filme é, na opinião deste espírito antigo que insiste em falar, fuleragem do começo ao fim – com um notável intervalo, porém, que vale todo o sacrifício do resto do filme; uma cena esplêndida tanto do ponto-de-vista técnico quanto dramático mesmo: a fatídica batalha entre Heitor e Aquiles (vividos, respectivamente, por Eric Bana e Brad Pitt). Quem ainda não viu o filme e deseja saborear a surpresa não-existente do desfecho, pode pular o próximo parágrafo.
Aquiles, o maior guerreiro de todos os tempos (alguns diriam “depois de Jack Bauer”, talvez), imbatível em qualquer combate, se porta diante dos muros de Tróia, reivindica com ódio saindo pelos poros do corpo seu direito à vingança pela morte do seu irmão nas mãos de seu oponente mais habilidoso, Heitor. Este último, figura fundamental para a defesa de seu povo, sabe que o direito é lícito e que não tem outra escolha senão aceitar o desafio, mesmo sabendo estar caminhando para a morte certa: nenhuma criatura mortal teria a menor chance num duelo individual com Aquiles. De fato, é o que acontece: mesmo apresentando uma resistência admirável, Heitor é morto por um Aquiles ileso, no máximo um pouquinho mais suado.
O que é interessante notar é que nesta batalha não são feitas concessões: sem piadinhas, sem alívios, sem a mínima incoerência no sentido de dar as costumeiras esperanças ao público, muito embora este esteja aparentemente desesperado por elas. A cena é montada como deve ser: intensa, séria, definitiva, caminha numa única e inevitável direção. Ninguém, personagens ou espectadores, está a salvo, numa situação confortável. É isso que me fez pensar que valeu a pena pagar o ingresso e resistir ao resto do filme. Ponto pro Petersen (para Romero, talvez?).
Comparando com outros filmes do gênero, tipo X-Men ou, como já escrevi, Batman Begins (certamente um filme melhor do que todos os exemplos aqui citados), de Chris Nolan, vemos que a problemática se baseia nessa lógica, essa do conforto. É como se a platéia só pudesse ficar tensa até um certo ponto, a partir dali coisas ruins poderiam acontecer e ela poderia começar a babar e querer morder-se a si mesma, sei lá - o que equivaleria a sair da sala ou não indicar o filme a um amigo, prejudicando sua bilheteria.
Interessante como a imagem da arte está vinculada ao entretenimento, que por sua vez está vinculada ao conforto. Quando Picasso exibe para Braque a sua Les Demoiselles d’Avigon, pintura que inaugura o cubismo, este reage com nojo. Logo, ao observar e tentar entender melhor, percebe a beleza por trás da forma bizarra, e se torna o outro grande nome do estilo pictórico. O mecanismo de procurar atribuir sentido ao que a obra oferece termina dando a Braque uma possibilidade ímpar não apenas de se expressar, mas de entender o mundo por um outro ponto-de-vista, e de elaborar para si um outro meio de percepção de beleza.
Neste caso, um hábito de tentar ver algo de uma maneira mais complexa termina, ao contrário do que pensa a maioria, aumentando as possibilidades de apreciar uma obra ao invés de restringí-las. É claro que, numa outra chave de leitura, pode-se pensar o contrário: tudo que não seja minimamente complexo termina soando banal, lugar-comum, medíocre, raso e, portanto, ruim. Talvez seja isso que esteja acontecendo comigo, no fim das contas. Fico eu aqui, nadando contra a maré, achando que os filmes estão cada vez piores, os programas de TV cada vez piores, os breaks comerciais e outdoors cada vez piores, enquanto que, dentro da lógica “é disso que o povo gosta”, tudo isso termina sendo a inegável regra, e não a execrável exceção.
Aí fico sonhando com um mundo onde talento redunda em sucesso, onde a lógica é do compartilhamento e não da imposição, do respeito à diferença e não da obrigatoriedade da padronização, enfim. Um mundo onde a arte é feita sem frases feitas fora de contexto, sem melodramas desnecessários, sem o consumo acrítico de uma ideologia maliciosamente entranhada em cada peça de comunicação. Um mundo onde as pessoas consomem arte, e não apenas se distraem com ela.
E, é claro, um mundo sem rabugice tipo esta minha, enfim.