Estudos sobre a Tristeza - cap. 5: de sacrifícios
É claro que eu já ouvi falar no sorriso da Rita.
E quem não ouviu? Poucos, provavelmente. Isto porque há tempos não pisa na Terra um sorriso tão célebre, tão capaz de representar todos os outros sorrisos, ao mesmo tempo em que os faz sumir. Um sorriso a ser estudado, pois não é um sorriso de boca, que restringe a uma pequena região do rosto uma expressão tão abrangente, mas um sorriso de olhar, rosto, alma. Sorriso que contagia e espanta. Que tranqüiliza e provoca. Bate e assopra. Enigma que não se limita à mera expressão da alegria, mas que também pode esconder uma profunda tristeza, e que ainda pode significar fragilidade total ou domínio absoluto. Quem pode saber qual emoção o sorriso da Rita esconde? Ou inspira? Porque ficam todos tão deslumbrados que não são capazes de ler através dele. Ou além dele. Impressionante como algo pode permitir nenhuma e tantas leituras ao mesmo tempo. Obra-prima de arte às avessas. Paradoxo retórico, para dizer o mínimo. Paraíso poético, para dizer o máximo. Sorriso portanto como diz a canção, capaz de levar consigo não só o sorriso, mas também o assunto.
E assim era o sorriso da Rita. Mas a Rita, nos seus ataques de humanidade, curtia lá os intervalos do seu sorriso. Era quando sorrisos mais banais tentavam se aproximar, e eventualmente conseguiam. Num desses, a Rita bem desprevenida e o sorriso quase hibernando, chega um sujeito banal e consegue ultrapassar o primeiro perímetro. E se torna muito caro à Rita, contentando-se em estar perto, apenas contemplando seu sorriso de uma posição privilegiada em relação aos demais.
Um dia, ou melhor, uma noite, a Rita caminhava com o seu caro banal pelas ruas do Centro, quando foram abordados por uma interferência na existência, que lhe pediu o pouco dinheiro que tinham. E como se era pouco, os desânimos se exaltaram, e sobrou um projétil no peito banal que acompanhava a Rita. Como de costume, a interferência rapidamente some após cumprir a sua função, a de interferir. Pragmaticamente, a situação se configura como trágica. Porém, no fundo, um sonho banal se realiza: morrer nos braços da Rita.
Ele dirige um último olhar às lágrimas da Rita, quase tão belas quanto o seu sorriso. E lhe faz um último pedido, acreditando estar diante de uma morte banal.
“Se é a última coisa que vou ver nessa vida, quero levar comigo teu sorriso.”
Rita, generosa que é, reuniu suas energias para suplantar a dor e olhar fixamente o rosto que começava a dispersar diante de si, e então, dirigiu-lhe um último sorriso. Quem não estava lá disse ter sido o mais intenso, aquele último sorriso da Rita. Quem estava lá não viu nada. Mas o moribundo banal se deu por satisfeito, expressando-se num leve sorriso antes de se entregar à morte. Levar consigo o sorriso da Rita é privilégio de poucos, talvez de únicos.
Mas aí aconteceu uma coisa inesperada: o sujeito banal lá, tendo ido embora com o sorriso da Rita, deixou a Rita assim, desprovida de sorriso, com esse ar melancólico constante, distante, belo, é verdade, porém nem chegando aos pés, muito menos ao rosto do que era antes. Porque antes pelo menos, tinha a opção do sorriso. Agora não. Era só tristeza e, uma vez ou outra, lágrimas.
Sempre disseram que, nesses casos, o melhor a fazer é se acostumar e tocar em frente. São fatos da vida, e ninguém tem como impedir que aconteçam e nem simplesmente apagá-los do livro da existência. Mas, neste caso específico, o da Rita, aquele elemento essencial, o sorriso dela, fez tanta falta que a existência deu um jeito de se reescrever.
Um belo e triste dia, a Rita estava distraída em seus afazeres melancólicos, quando num impulso olhou para o horizonte e distinguiu algo que parecia ser a silhueta de um homem, que se aproximava, e à medida que se aproximava ia trazendo à lembrança da Rita algo familiar, dando-lhe cada vez mais a impressão de já tê-lo visto, mesmo tendo ele uma aparência tão banal, era possível sim reconhecê-lo, e logo a Rita percebeu que se tratava daquele que tinha levado embora seu sorriso, e agora parecia querer trazê-lo de volta.
“Vim devolver teu sorriso. Levei sem querer, me perdoa. Não sabia que meu desejo era tão forte. Ainda bem que aprendi que na vida, e também na morte, tem coisas bem maiores do que a gente. Toma. É teu”, disse ele, sorrindo.
E a Rita, depois de muito tempo, sorriu, aceitando o que era seu de volta. Mas um outro instante de melancolia lhe tomou de assalto, e ela disse que seu sorriso nunca seria o mesmo sem ele. Mas o sujeito, apesar de banal, tinha lá seus atributos – não é todo mundo que leva embora assim o sorriso da Rita e depois ainda consegue trazê-lo de volta. E disse, em tom bem convincente à Rita, que a melancolia poderia, sim, pegá-la de surpresa algumas vezes. Mas nesses momentos, era só sorrir, e lembrar que aquela criatura banal seria sempre parte daquele sorriso. E logo ela iria esquecer de lembrar de sorrir.
E assim, a Rita seguiu vivendo coerente aos seus sentimentos, encantando com seu sorriso toda a parte do mundo que estava à sua vista, e também um pouco além dela.