25 agosto 2009

Estudos sobre a tristeza - cap. 2: da sensação de não-pertencimento

A MENINA TORTA

Dizem que foi no parto. A posição estava complicada e ela teve que sair à fórceps. E quando saiu, já saiu torta. E do jeito que nasceu, ficou. Cresceu. Demorou pra aprender a sentar, a aprender a andar, a aprender. A falar, nunca. Não que não lhe fosse necessariamente possível, apenas porque o que tinha a dizer não parecia fazer o menor sentido. Porque pra ela o mundo era torto. Todo mundo era, menos ela — o que a levou a concluir que era seu o problema. Ela era torta, não burra.

Seus pais, desde que perceberam a situação, ou seja, muito cedo, tentaram fazer de tudo para desentortá-la. Operações plásticas, medidas drásticas, terapias de curta, média e longa duração — e ela parecia estar sempre fora de lugar. Aí eles tiveram a perspicácia (ou falta de uma) de parar de tentar desentortá-la e tiveram a idéia (ou falta de uma) de entortar o mundo ao seu redor, para ver se pelo menos ela se sentia menos torta.

Então, veio um arquiteto com fama de torto pra entortar as coisas. E os designs pareciam ser todos sob medida. Animados que estavam com o resultado, os pais simplesmente encaixavam a menina em tudo que era móvel torto, de tudo que era jeito. E nem perceberam direito que a menina permanecia torta, mesmo entre coisas tortas.

O arquiteto, entusiasmado com as possibilidades criativas, resolveu construir uma casa torta para a menina. Escolheu uma encosta junto a um precipício, e projetou uma casa calculando a angulação exata de entortamento, de modo a preencher perfeitamente as necessidades da menina. E a casa ficou lindamente torta.

Acontece que o coeficiente de entortamento da casa estava quase correto, não fosse por um valor negativo em relação ao coeficiente da menina. E a menina, ao tentar pular para dentro de casa, terminou caindo no precipício.

O que poderia ser um final trágico para a menina terminou tendo um efeito torto: ao cair, a menina se sentiu, nos seus últimos momentos, totalmente consertada. E ao se tornar um fantasma e ficar morando entre o limbo da existência e as brechas dimensionais, ela curiosamente passou a se sentir em casa.

E hoje a menina é um fantasma não-torto e feliz.

10 agosto 2009

Estudos sobre a tristeza - cap. 1: de memórias, saudades e afins

CÁRCERE DE MEMÓRIAS


Ele funcionava por fragmentos. Às vezes, achava que não passava disso: um fragmento. Morava longe de sua cidade natal, não tinha parentes ou amigos ali. Amores muito menos. Porém, na ordem de suportar a solidão, havia se auto-rogado uma maldição: viver apenas de lembranças, até que um fato completamente novo lhe quebrasse o feitiço.


Essa maldição era muito menos mística do que podia parecer. Muito pelo contrário, tratava-se de algo extremamente racional: em vez de encarar os fatos como novos, ele passou a remetê-los a eventos do seu passado. E passou, assim, a ver as novidades de cada dia como rotina, ou repetições de acontecimentos.


No início, não foi tão fácil — ele tinha que se policiar e se forçar a pensar um pouco. Ia pro escritório ao longo de um rio desconhecido que cortava a cidade, e pensava, saudoso: "na minha cidade tinha um rio." Chegava no trabalho e se deparava com um problema, e então dizia a si mesmo: "já resolvi esse problema pelo menos umas mil vezes." Voltava pra casa e reposicionava os móveis, deixando-os na mesma configuração de sua casa anterior. Olhava para a sua cama e se forçava a ver o amor de sua vida dormindo tranquilamente, dando-lhe um beijo de boa noite antes de voltar pra sala e tomar uma taça de vinho (velho hábito), esperando o sono chegar.


Foi um esforço árduo, mas valeu a pena: logo, o rio era o seu, o trabalho era o seu, a casa era a sua, o amor era seu. E a vida, assim, era a sua.


E por viver de lembranças, ele era o homem mais feliz do mundo.

Até que um dia, estava ele tranquilo chegando no trabalho, a uma coisa completamente nova se apresentou. Era um problema sem precedentes, sem aviso prévio que fosse, jurisprudência muito menos. Uma coisa que ele sempre temeu em toda a sua vida recente: um fato completamente novo.


Habituado que estava a acessar suas memórias, ele passou um bom tempo procurando uma experiência que pudesse aplicar ao problema. Tempo perdido, de fato, o fato era novo. E sendo algo que pedia uma resolução imediata e eficaz, ele teve que se esforçar muito para sair do seu labirinto de memórias e pensar naquilo especificamente.


Até que ele conseguiu. Lembrou que suas lembranças eram lembranças, ou seja, acontecimentos do passado, e não do presente, do futuro muito menos. Então, olhou o problema de frente e o resolveu. E assim, o fim do expediente chegou.


E ele voltou pra casa achando o rio estranho. Ao sacar o chaveiro para abrir a porta do prédio, pensou que ele pesava mais do que de costume. Subiu as escadas até o fim, e teve que descer dois lances de volta, tendo errado o andar. Mal conseguiu reconhecer a porta de seu apartamento. e quando abriu, seu amor não estava lá. Nem dormindo, desperto muito menos. Achou o vinho diferente e o sono, naquela noite, não chegou mesmo depois de uma garrafa inteira.


E ele lembrou que estava só. E as lembranças se tornaram uma cruel tensão entre eventos outrora felizes em si e o estatuto de serem, afinal, apenas lembranças.


E por viver de lembranças, ele era o homem mais infeliz do mundo.

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