Estudos sobre a tristeza - cap. 2: da sensação de não-pertencimento
Dizem que foi no parto. A posição estava complicada e ela teve que sair à fórceps. E quando saiu, já saiu torta. E do jeito que nasceu, ficou. Cresceu. Demorou pra aprender a sentar, a aprender a andar, a aprender. A falar, nunca. Não que não lhe fosse necessariamente possível, apenas porque o que tinha a dizer não parecia fazer o menor sentido. Porque pra ela o mundo era torto. Todo mundo era, menos ela — o que a levou a concluir que era seu o problema. Ela era torta, não burra.
Seus pais, desde que perceberam a situação, ou seja, muito cedo, tentaram fazer de tudo para desentortá-la. Operações plásticas, medidas drásticas, terapias de curta, média e longa duração — e ela parecia estar sempre fora de lugar. Aí eles tiveram a perspicácia (ou falta de uma) de parar de tentar desentortá-la e tiveram a idéia (ou falta de uma) de entortar o mundo ao seu redor, para ver se pelo menos ela se sentia menos torta.
Então, veio um arquiteto com fama de torto pra entortar as coisas. E os designs pareciam ser todos sob medida. Animados que estavam com o resultado, os pais simplesmente encaixavam a menina em tudo que era móvel torto, de tudo que era jeito. E nem perceberam direito que a menina permanecia torta, mesmo entre coisas tortas.
O arquiteto, entusiasmado com as possibilidades criativas, resolveu construir uma casa torta para a menina. Escolheu uma encosta junto a um precipício, e projetou uma casa calculando a angulação exata de entortamento, de modo a preencher perfeitamente as necessidades da menina. E a casa ficou lindamente torta.
Acontece que o coeficiente de entortamento da casa estava quase correto, não fosse por um valor negativo em relação ao coeficiente da menina. E a menina, ao tentar pular para dentro de casa, terminou caindo no precipício.
O que poderia ser um final trágico para a menina terminou tendo um efeito torto: ao cair, a menina se sentiu, nos seus últimos momentos, totalmente consertada. E ao se tornar um fantasma e ficar morando entre o limbo da existência e as brechas dimensionais, ela curiosamente passou a se sentir em casa.
E hoje a menina é um fantasma não-torto e feliz.