27 setembro 2009

Estudos sobre a tristeza - cap. 4: do desencontro.

ERRANTES


Havia hibernado por pelo menos 7 horas. Dormiu tão profundamente que os sonhos nem chegaram a incomodar. Rápidos fragmentos eram o máximo: velhos amores beijando velhos amigos, peixes flutuantes voando ao seu lado por sobre uma floresta e uma ida à feira com sua avó ajudando-lhe a escolher as frutas, o que das temáticas lembradas lhe parecia a mais absurda. Nada que se sustentasse em nível equiparável às raras horas de sono que haviam se estabelecido como exceções nas suas noites recentes. Não era comum os sonhos lhe deixarem dormir.


E como se os sonhos não lhe oferecessem substrato suficiente, executou seu ritual eventualmente diário. Sentou-se ao café e se pôs a observar. Do café, era possível ler os pensamentos dos errantes. Interpretá-los, ao menos.


Havia uma menina na esquina da ponte. Ansiosa e de vermelho. Era evidente que esperava alguém e ficou evidente que este alguém não viria. Deve ter fumado uns 7 cigarros antes de sair dali.


Talvez esperasse o rapaz do outro lado da ponte, que olhava o rio não como se quisesse pular, mas como se quisesse fazer parte dele. Parecia estar com preguiça de existir. Parecia-lhe que às vezes nem o rio existia. Guardava uma certa nostalgia de tempos literários, quando o amor transmitia tuberculose ou pneumonia. Será que o órgão nevrálgico do amor eram os pulmões, e não o coração? Pelo peso dos seus suspiros, parecia óbvio — não fosse o aperto no peito, este invisível.


Não era o rapaz que ela esperava, afinal, pouco depois ela voltou com outro maço, num ângulo possível de enxergá-lo. E não era ela por quem perdia seu olhar: o rapaz gostava de rapazes, desde que não fosse ele mesmo. Enquanto procurava o isqueiro na bolsa, posicionando-se recostada ao mesmo poste de antes, balbuciava no vazio, antecipando frases que nunca seriam ditas. Acendeu o cigarro e retomou sua espera, olhou ocasionalmente para o homem sentado num banco próximo, desviando-se em seguida de volta ao vazio.


Estava absorto em sua leitura, mas não completamente. Apoiava o livro no encosto do banco com uma das mãos, liberando as coxas e o colo para uma cabeça imaginária, lendo um outro livro imaginário, acariciando-lhe distraidamente com seu corpo imaginário. Sua imaginação lhe bastaria, caso não sentisse acidentalmente uma falta da matéria, denunciada por derivações do olhar para o horizonte, e passeios no ar próximo com sua mão livre.


Havia pontos comuns entre os errantes: a cabeça baixa, erguendo-se apenas para procurar algo que nunca estava lá. O peso dos suspiros, o olhar se diluindo no infinito do horizonte, desintegrando qualquer intenção concreta, uma impaciência para com a existência, confronto contínuo entre constatações sobre sua brevitude e sua eterna fuga da finitude — uma fuga boba e covarde, pensavam os errantes, tão covarde quanto um egocentrismo mínimo, uma parca vontade de ser.


Mas a impaciência da menina da esquina, porém, era mítica, tão difícil quanto fácil de distinguir. Não era possível ler seus lábios, mas era possível destacar sua fúria quase incontida misturada com uma melancolia avassaladora, equilibrando (neutralizando?) seu comportamento de forma extremamente cruel. Vencida, finalmente, pelos cigarros e por uma lágrima, ela se foi definitivamente.


E do café, de repente a vista se tornou o horizonte, reconhecendo-se sozinha, o olhar caindo sobre a xícara vazia em meio a um suspiro pesado e uma taquicardia súbita. "Preciso tomar menos café", pensou.


Talvez devesse pensar menos.

18 setembro 2009

Estudos sobre a Tristeza - cap. 3: de uma certa compreensão das coisas

TOURO E CAPRICÓRNIO


Era justamente uma liberdade total de espírito o que ele mais admirava nela. A única coisa nela que ele próprio não tinha. Todo o resto era bem parecido, ainda que se manifestasse de formas ímpares. Um certo número de afinidades intelectuais, uma certa sensibilidade artística aflorada, um certo senso de humor sarcástico, uma dose errada de apego às próprias idéias. Tinham poucas pretensões financeiras: ela queria poder comprar seu ócio, e ele apenas um pouco de paz interior, mas não muita. E os dois queriam continuar trabalhando. Muito. E tudo o mais se diferenciava pelas trajetórias anteriores (e, posteriormente, posteriores) que eles seguiram.


Foi uma história infelizmente curta e felizmente intensa, ou vice-versa. Tudo para eles podia ser ambíguo, inclusive isto. Sabe-se que, por mais desconfiados da sorte que ambos fossem, não conseguiram escapar das tantas afinidades instantâneas e atingiram um nível raro, para não dizer incomum, de felicidade. E foi uma felicidade que dava gosto de ver (diziam alguns dos seus amigos) e, mais ainda, de viver. Ela se divertia em pensar que se tratava de um alinhamento dos astros, tanto que ele passou a prestar atenção em horóscopos. Muito rápido, eles passaram de uma forte amizade para um amor declarado, ainda que informalmente, advindo de uma vontade imediatamente eterna de estarem juntos.


Mas por contingências do destino, eles se distanciaram, a princípio fisicamente, e depois aquele sentimento mútuo equilibrado começou a pender para um lado, causando um afastamento maior. Aquela felicidade plena, viciante a tal ponto que tinha feito com que eles esquecessem suas desconfianças, parecia de repente irreconhecível, irrecuperável, inexistente. E houve um fim não-declarado para algo nunca de fato iniciado. E por se amarem tanto, eles tentaram se compreender, se respeitar e se afastar. Para algumas pessoas, aquilo era uma pena. Para eles, era a ordem natural das coisas.


Ele, por sua história e característica, não conseguiu se desligar. Não achou o botão. Ela seguiu sua busca por sua conta própria. E continuou usando e explorando sua liberdade de forma íntegra, como sempre fez, encarando inclusive as consequências disto — pessoa notável, ela. Ele, por sua vez, seguiu na sua inércia produtiva. Não tinha muita escolha e já conhecia seus processos o bastante para saber como se resgatar — ao menos como tentar. Eventualmente, eles se encontravam, e ele tinha a impressão de já estar sobrando na vida dela, e que não havia o que ele pudesse fazer que pudesse trazê-la de volta, por melhor ou pior que fosse. Ele sabia que seu espírito era livre, e que ia demorar para que os dois se unissem, se é que isso ia acontecer. E o tempo, nestes casos, pode tanto curar quanto decretar um estado terminal. Também o tempo era ambíguo para eles.


Ele, racional como ela, resolveu então sistematizar de forma diferente. Em não conseguir se libertar da percepção dos detalhes, da própria presença em espírito, da lembrança e do desejo, chegou a algumas conclusões. Uma primeira é que a felicidade plena, segundo fontes confiáveis, não estava reclusa a uma concepção linear do tempo, tendo ela existido independente do que se tornou depois; não faria sentido, portanto, circunscrevê-la num momento específico, mas integrá-la à totalidade das coisas. Uma segunda conclusão é que a felicidade, plena daquele jeito, havia se restringido a poucos momentos no tempo linear. O que o levou a uma terceira conclusão, colocando a felicidade não como uma regra, mas uma exceção. Um desdobramento disto foi a hipótese de que poucas pessoas teriam chegado ao nível de felicidade que eles chegaram, logo, numa concepção não-linear do tempo, ele deveria se sentir vitorioso por ter conseguido.


Ele decidiu então que, como lembrança ou vaga esperança, amizade ou contraparte, ela faria parte da sua felicidade, e não da sua tristeza.


Isto não tornou sua vida mais fácil. A razão tem lá seus limites. A tristeza, tendo sido estabelecida como regra geral da sua vida, frequentemente lhe fazia recordar de que ele não detinha mais a felicidade. Sentimentos correlatos, como a esperança, tornavam o processo mais difícil. Mas depois de muita prática, ele acabou se acomodando e tocando a vida como dava.


Ela, no entanto, continuava existindo, como sinônimo de felicidade. E mesmo tendo aceitado a tristeza como companheira, ele se pegava pensando muito mais na outra, ela, a felicidade em pessoa. No início, sentiu-se um pouco culpado de estar assim, traindo sua única parceira constante. Depois, ele levou a si mesmo na esportiva e passou a aceitar sua efemeridade, retroalimentando a esperança de um dia voltar a ser plenamente feliz. Foi a forma como ele conseguiu se manter fiel à tristeza: buscando eternamente a felicidade.


Por isso ele continua checando o horóscopo todos os dias.

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