14 março 2008

Estado Contemplativo

Isto pode soar um pouco nostálgico, proselitista ou selvagem. Pode escolher um, mais de um, e mesmo todos, como quiser. Ou pode substituir qualquer um deles por “sincero”. Aqui vai:

É provável que Chiara Lubich tenha sido uma das figuras mais influentes do século XX, mesmo sem ter freqüentado os spotlights dos livros de história recente ou periódicos acadêmicos e populares que legitimam as informações circulantes na cultura ocidental. Em 1943, no norte da Itália (portanto bem no meio da 2ª Grande Guerra), ela instituiu um estilo de vida que viria a inspirar a fundação de um movimento dentro da Igreja Católica, e que logo tomou proporções maiores do que a própria Igreja, manifestando-se nas mais diversas culturas e concepções – até mesmo agnósticas e ateísticas, diga-se de passagem. Ela e os seus alcançaram essa abrangência indo ao cerne da questão: o amor em suas mais diversas formas iria salvar o mundo. Inspiração cristã, mas que encontra ecos em quem tem outras fés, ou mesmo em quem não tem, especialmente quando nos abstrairmos de preconceitos nossos e alheios.

O mais interessante disso tudo é ter contribuído para uma diferente perspectiva da fé católica, por séculos tão conservadora – a fé, mais do que um mecanismo social cerceador, regulador, punitivo muitas vezes, deveria ser vista como uma atitude prática, aplicada a cada momento para a construção de um mundo melhor possível –, sem de fato fazer barulho a respeito. A própria vida, vivida de forma verdadeira, deveria fazer suas propostas e mostrar um caminho a ser seguido. Dentre tantas inspirações geradas dessa postura, uma particularmente me é cara: a contemplação. Muito já foi dito sobre isto, por concepções religiosas e humanistas. De São Tomás de Aquino a Hegel, e depois outros investigadores da apreensão da mensagem artística, há coisas belíssimas e instigantes escritas a respeito – de maneira que eu vou me resumir a uma percepção prática.

Gosto de dizer que um dos principais atributos de um artista é a capacidade de observação, do macro aos detalhes. É penetrar numa situação, extrair dela algo que é mais do que se apresenta, estar sensível às suas interpretações e a partir de então apresentar uma essência. Reler a realidade. E expressar-se em silêncio. O silêncio fala, como todos sabem, mas poucos sentem. Recolher-se para estar aberto ao outro, e sentir que há algo a dizer a respeito, ainda que seja muito pouco. E deixar que esse dito seja por sua vez contemplado e relido novamente, numa constante atitude de liberdade, aqui também vivida de forma prática. Em outras palavras, reduzir a percepção ao discurso, para que o discurso amplifique uma percepção outra. Para o artista, é entregar sua voz ao silêncio. Para o apreciador, é preencher-se desse silêncio expressivo. Quem fala é a obra, emblema do que é feito, representação em si de uma contemplação inicial que se torna uma contemplação póstuma e que inspira outras contemplações, vivas.

Preciso dizer que esse pressuposto para a atividade artística eu aprendi com Chiara. Por mais controversa que seja a minha fé, foi dessa parte da minha história que eu tirei este cerne. Nada sistematizado ou premeditado em livros ou sermões – a vida, simplesmente, fala por si. Especialmente quando paramos para contemplá-la.

Chiara morreu hoje aos 88 anos, por volta das seis horas da manhã, horário romano – era madrugada no Brasil. Fim sereno de uma vida linda, para dizer o mínimo, perfeito exemplo de uma legítima contemplação ativa. Grazie di tutto, amica, sorella, madre.

E che tutti siano uno.

02 março 2008

Metal Sutil

Reflexões sobre estatuetas e gigantes de metal...

Como prometi, vou tentar fazer meus posts mais freqüentes, mesmo que sejam mais curtos. Aproveitando o Oscar deste ano, normalmente tão cheio de polêmicas e surpresas, pensei em comentar nada sobre a festa em si – este ano prejudicada em preparação pela longa greve de roteiristas –, pouco sobre alguns vencedores (considerando os poucos filmes que vi devido ao pouco tempo que infelizmente dispus), mas sobretudo algumas escolhas da Academia, que me suscitaram algumas reflexões sobre como o cinema, arte técnica por excelência, representa e reapresenta a nossa percepção da realidade. Nessa análise, entra também meu lado pessoal de quem não leva o Oscar tão a sério, mas que continua torcendo pelos seus favoritos, na eterna utopia de que um dia a indústria e a cinefilia possam convergir – quem não estiver interessado nessa parte, já que este blog não se propõe a ser um depositório de críticas, pode pular o próximo longo parágrafo, na boa.

A princípio, a escolha por Onde os fracos não têm vez (No country for old men, de Joel e Ethan Coen), me deixou muito feliz, bem como os prêmios de roteiro e direção. Sou fã praticamente incondicional dos Coen, quem me conhece sabe. Mas também sou um grande admirador do Paul Thomas Anderson, de Sangue Negro (There will be blood), descobrindo recentemente numa lista de discussão cinéfila que sou uma das 5 pessoas que gostou de Embriagado de amor (Punch Drunk Love, 2002). Confesso que, sabendo que os Irmãos Coen já haviam ganho melhor roteiro e caminhavam para o melhor filme, estava torcendo pelo Anderson, que nos presenteou com obras-primas como Boogie Nights e Magnolia. Enfim, de toda forma, foi legal ver dois representantes legítimos de um cinema americano independente (em estilo) subir no palco e discursar com certa desconfiança daquele universo glamourizado. Outra premiação que reconheço não se tratar de uma injustiça foi pra atriz coadjuvante. Tilda Swinton, sem dúvida, subiu cheia de méritos por sua atuação sutilíssima em Conduta de risco (Michael Clayton), aquele limite entre a pessoa que faz deliberadamente suas escolhas mais por sucumbir à pressão do sistema do que propriamente por falta de ética intrínseca. No entanto, eu estava torcendo pela Cate Blanchett (vencedora na mesma categoria em 2005 por The Aviator, de Scorcese, duas vezes candidata na noite), e por um único prêmio possível para um filme que gostei muito: I’m not there, de Todd Hayes. No mais, torci pela linda animação Persepolis, de Marjane Satrapi e Vincent Paronnaud, mesmo sabendo que Ratatouille, de Brad Bird, era a barbada da noite – era querer demais ir contra todo um gênero e um estilo estabelecido na indústria, ainda mais quando o filme é pelo menos razoável.

A maior injuriação veio mesmo nas categorias técnicas, o que me reporta às tais reflexões de que falei. Um amigo meu, que teve suas opiniões corroboradas por muitos do grupo com quem eu assistia à cerimônia, achou que o grande injustiçado da noite foi Transformers, de Michael Bay. Um dos favoritos em 3 categorias (efeitos visuais, edição de efeitos sonoros e som), terminou não levando nada – e meu amigo havia pontuado algo bem interessante: era possível sentir o peso do metal no asfalto, as engrenagens mutantes se encaixando, dando à nossa visão de um robô virtual completamente integrado à paisagem “real” um ar de verossimilhança que, mesmo na banalização de composições digitais no cinema atual, não deixa de ser impressionante.

Talvez a eventual injustiça cometida com Transformers e a conseqüente premiação de seus concorrentes nos revele algo, porém. Nas categorias de som, o metal sutil no asfalto perdeu para a emulação das situações assim vistas como reais de The Bourne Ultimatum, de Paul Greengrass. Parece que parte da técnica do cinema, desde sua gênese, ainda entra nessa tendência, a de traduzir o mais perfeitamente possível as nossas percepções sensorias na reprodução da tela, ao invés de assumir certas virtualidades e permitir a criação de novos efeitos, atribuindo-lhes uma realidade toda sua, algo tão comum nos nossos tempos (grande mérito, aliás, de um vencedor que um pouco inverteu essa lógica: Matrix, dos Irmãos Wachowsky, em 2000).

Em relação aos efeitos visuais, essa lógica parece completamente contraditória: o vencedor, The Golden Compass, de Chris Weitz, materializa o universo fantástico bastante peculiar do romance de Philip Pullman, tentando conjugar ciência e magia num mesmo contexto narrativo. Trata-se, de fato, de um mundo à parte, regido não pela nossa física materialista, mas por elementos mágicos que colocam a metafísica exposta como pressuposto. Em contraste com Transformers, mesmo dentro de uma concepção evidentemente e assumidamente ficcional, ele se distancia de uma emulação da percepção realista, praticamente admitindo dentro de si uma textura digital à qual nosso olhar já está tão familiarizado. A aceitação e assimilação dessas texturas é vista, muitas vezes, como um sinal dos tempos: trata-se de uma acomodação dos sentidos aos numerosos estímulos proporcionados pela invasão das novas mídias na cultura contemporânea.

Azar dos robôs alienígenas e do pelo-menos-competente Michael Bay: ao ser um emblema quase perfeito de um ponto de transição na história da percepção cinematográfica, ficou no meio-termo, e não se valeu de nenhum dos lados de sua intersecção. Tudo bem, o filme não é lá essas coisas mesmo.
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