14 dezembro 2006

Perspectiva Cósmica

Relatório de um pequeno exercício de abstração.

Meados de uma tarde atrasada de quinta-feira, dirigindo pra casa com Cecília no banco do carona, passamos à frente de um grande parque no Recife, e retardo o carro com uma freada suave para deixar passar um sujeito ímpar como tantos outros, aspecto sujo de mendigo apesar do corpo aparentemente saudável exibido pela ausência da camisa. Os cabelos desgrenhados antecipavam uma certa dispersão extrema, confirmada segundos depois pela conclusão de que ele falava sozinho, discutindo energicamente com o nada.

Possivelmente, outros carros com os movimentos ralentados por conta do sujeito em questão caminhando sem rumo tenham simplesmente ficado no estereótipo (que talvez lhe seja adequado) e dito: “Que cara doido!” Eu, de fato, pensei o mesmo, mas logo depois um pensamento verbalizado me tomou a palavra: “Esse cara é a humanidade”. Diante do olhar curioso de Cecília (e talvez de um leitor posterior deste blog), rapidamente me fiz explicar.

Imagine que um explorador alienígena, cuja raça cientificamente avançadíssima já tenha descoberto, entre outras coisas, como navegar distâncias interestelares e como prolongar suas vidas de modo a tirar proveito disto. E imagine que uma sede de conhecimento similar àquela que carregamos o tenha levado a observar com particular interesse um certo planeta azul brilhante em meio a um deserto galáctico inóspito e improdutivo. E agora imagine que ele tenha observado com tanta curiosidade e esmero nossa história que seja capaz de perceber todo esse processo de mundo virtual que está sendo criado via avanços nas ciências da computação – enfim, isto que venho insistindo em discutir por aqui com meu deslumbramento tecnofóbico.

Nosso amigo tem consciência das infinitas dimensões do Universo. E na sua jornada pelo conhecimento, tomada na direção da expansão dos limites das informações, já esteve em lugares que o Guia do Mochileiro das Galáxias de Douglas Adams ainda não registrou. Seria possível esperar que ele olhasse para a espécie aparentemente dominante da Terra e estranhasse a sua atitude de, em vez de estar tentando abranger seu alcance de conhecimento para além dos limites de sua atmosfera, estar criando um mundo endógeno, para uso interno, e complexificando este mundo cada vez mais. E talvez sentisse a vontade de chegar, segurar firmemente o eixo do planeta e chacoalhá-lo com energia, repetindo: “Saia daí de dentro! Há um universo aqui fora!”

Ou, ao invés disto, ele simplesmente pegasse sua espaçonave, desse ré e arrancasse para um outro fim do universo, pensando com seus botões brilhantes: “Que planeta doido!”

04 dezembro 2006

Tempo de Sonhar

Abstração pós-orgânica e outros termos estranhos.

Li outro dia no blog do Silvio Meira uma nota sobre o modafinil, uma droga que faz com que o tempo de 4 a 5 horas de sono tenham uma equivalência ao descanso de 8 a 10 horas, desenvolvido para pessoas que precisam ter atenção desperta pronlongada, como soldados, programadores de software ou workaholic insones obsessivos como este que vos fala. Interessante que a própria existência de drogas como essa parte de uma concepção em que ‘dormir’ não está contido no conceito de ‘viver’ – para muita gente, de fato, é perda de tempo (falo por mim também).

A idéia me pareceu, a princípio, tentadora, mas fiquei pensando em outros possíveis desdobramentos. Afinal de contas, o sono, mesmo sendo uma perda de tempo real para uns, tem lá suas atribuições, certo? Além da mais óbvia, de repousar o corpo e a mente de uma jornada inevitavelmente intensa, preparando para uma próxima igualmente empenhativa, existe a questão do sonhar. Pelo que sei, o sonho corresponde a uma parte muito pequena do nosso sono, sendo restrita ao nível 2 ou 3, quando nossas pálpebras estão se mexendo rapidamente (o popular Rapid Eyebrow Movement , que deu nome a uma banda americana bastante conhecida). Mas, e se a diminuição de sono, proposta por drogas como o modafinil, for proporcional em suas fases? A conseqüência imediata seria diminuir o tempo de sonhar, minimizando suas funções fisiológicas, lúdicas e simbólicas.

Certo, esta última conclusão pode não ser cientificamente comprovada (mesmo levando em conta a proporcionalidade na matemática ou a própria fisiologia do sono). Porém, pode servir também como metáfora para os nossos tempos. Uma metáfora, à primeira vista, contraditória em vários aspectos: enquanto alguns de nós aceitam, passiva ou ativamente, esta submissão total às rotinas de trabalho e produtividade (de modo a assumir o tempo desperto como o tempo vivido), inclusive dormindo naturalmente menos que a maioria das pessoas, outros, precisando de mais horas de sono, teriam de se ver obrigados a consumir a tal droga, “igualando” a quantidade (ou possibilidade) de atividades.

Esta perda de espontaneidade existencial pode (1) não dar conta de uma lacuna relativa entre as pessoas, já que o tempo criativo é tão subjetivo e pessoal quanto necessidades fisiológicas de mais ou menos horas de sono, como também pode (2) gerar mais um elemento de stress e tensão, fazendo com que haja uma obrigatoriedade de tornar o tempo adicional útil; ou, ainda, (3) promover uma espécie de “abstração pós-orgânica”, ou seja, uma necessidade de gerar idéias, detectar desejos e reler a realidade não mais dentro do nosso tempo biológico, mas de um tempo artificial, auto-imposto, pondo a perder o próprio conceito de “abstração”.

Mas a contradição maior parece vir na forma de contexto histórico mesmo. Se pensarmos no século XIX, quando os meios de comunicação de massa ganharam força na sociedade como expressão de uma certa ideologia do sistema capitalista cada vez mais arraigado, vemos uma forma de organização que se direcionava para a conformação de crenças e bens. Ou seja, a lógica de uma “sociedade industrial” ditava o que as pessoas tinham que consumir, já que os produtos e as idéias eram concebidos em série, numa linha de montagem que vai do sentido literal ao metafórico.
Um século e meio depois, vemos os meios de massa se tornando “novos meios”, expressão de um outro tipo de organização social: os meios não são mais padronizados para uma “massa” – fatores como interatividade, automação e maleabilidade fazem com que o consumo seja configurado em termos personalizados, aproximando-se da utopia da sociedade de indivíduos únicos. Neste contexto “pós-industrial”, é a customização dos bens e idéias que impera, uma multiplicidade de escolha de consumo oferecida pelas novas tecnologias.

Ligando com a questão da droga do sono, ou seja, mais uma ferramenta técnica manipulando a rotina humana, surge o paradoxo: estaríamos usando nosso tempo útil adicional como forma de igualar comportamentos e conseqüentes produtividades (lógica industrial) ou para dar conta de uma necessidade nossa enquanto indivíduos (lógica pós-industrial)? Não tenho a resposta imediata, mas me parece que, de um jeito ou de outro, estaríamos sujeitos a um sistema que nos cobra eterna produtividade e submissão.

Nossa, parece que eu me tornei apocalíptico, de repente. Vou tentar aliviar, preservando minha personalidade e individualidade e não tomando o tal remédio, continuando com minhas 4 ou 5 horas naturais de sono, e mantendo meus hábitos workahólicos, já que eles são parte de mim mesmo.

E prometo continuar sonhando...
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