24 julho 2006

Futuros Antigos (Modernidade Ultrapassada - parte 4)

Sobre futurismo retrô e hábitos sociais

Acho que vou ter que mudar o perfil deste blog para “confissões de um tecnófobo deslumbrado”. Não levem a mal, é só que às vezes a gente está tão envolvido numa coisa que certas fichas não chegam a cair. Neste último fim-de-semana, fiz pela primeira vez uso de um programa que há muito tempo deixou de ser novidade: o Skype. Conversei com uma amiga em Londres, e mais tarde com outra em Curitiba, com transmissão em tempo praticamente real de som e imagem.

De repente, lembrei de algumas séries de ficção que assistia na infância: o tal de “videofone”, em que um coronel do exército americano conversava diretamente com os super-heróis da Sala de Justiça, parecia um aparato avançadíssimo, e no entanto soa tão banal já neste segundo parágrafo. Achei divertido, porém, pensar nessas coisas a este ponto. Nem tanto um deslumbramento, portanto, mas um exercício de reflexão sem maiores conseqüências.

Aí comecei a lembrar de outros avanços “previstos” na produção ficcional com que tive contato até agora. Alguns foram alcançados, outros não, outros nem chegaram a ser vistos como avanços, obsoletos em conceito antes mesmo de qualquer desenvolvimento apontar em sua direção. Uma adaptação, aliás, que gostaria de ver na tela, é a série de quadrinhos Terminal City (1997), criada e escrita por Dean Motter e brilhantemente desenhada por Michael Lark. Os carros voadores da realidade estabelecida na história tinham um design com referência das décadas de 30/40. Os cargos administrativos eram todos ocupados por robôs feitos de aço e ferro pesado, corpo cilíndrico enorme e cabeça esférica de lâmpada, bem diferente do conceito de agilidade, leveza e portabilidade das máquinas de hoje. A forma mais abrangente de comunicação eram mensagens enroladas de papel, enviadas por tubos de ar comprimido, o mesmo sistema usado em alguns navios e submarinos.

Viagens interestelares e colonização de outros planetas são outra grande especulação longe de serem concretizadas. Se no encarte do LP With the Beatles (1964) há uma citação a pessoas em Marte ouvindo a banda na década de 90, hoje vemos esta realidade muito mais à frente – até por conta de desaceleramento da corrida espacial. Viagem no tempo, só se for subjetiva, espiritual ou metafísica. Nem pensar nos termos físicos previstos por Jules Verne ou por séries como O Túnel do Tempo, da década de 60. Por falar nesse tempo, o que dizer do cinto de utilidades do Batman carnavalesco de Adam West?

E diante da nossa perda geral de ingenuidade tecnológica, penso em como é hoje a concepção ficcional do futuro. Há, em geral, perspectivas meio apocalípticas, em que seremos obrigados a achar soluções de reconfiguração social via algum aspecto científico – genético no caso de Gattaca de Andrew Niccol (1997), virtual como em Matrix dos Wachowski (1999), ou até o psíquico-tecnocrático de Minority Report de Spielberg (2002), entre muitos outros. O interessante é que, com toda nossa aparente desmistificação acerca da tecnologia e dos seus efeitos na sociedade, hoje olhamos o futuro com certo receio, bem diferente do entusiasmo de outrora.

Consciência crítica ou um outro tipo de mistificação? Fora ou dentro do ambiente científico, essas especulações sempre existiram, com pesos bem diferentes, é claro. Pelo sim e pelo não, sempre achei melhor não pensar na tecnologia como uma entidade à parte, que se constrói independente da humanidade. Essa coisa de um sistema a que devemos simplesmente nos submeter nunca entrou muito bem na minha cabeça. Mas, enfim, talvez isto também seja uma concepção meio retrô das coisas.

12 julho 2006

O bom, o mau e o feio

Aspectos retóricos de outra paixão nacional

Bom, segundo post esta semana, pra compensar o atraso vergonhoso em relação à minha penúltima contribuição ao blog. E já que estamos em paixões nacionais, vou emendar com um outro hábito social imediato do brasileiro: novela. Isto porque não apenas a copa acabou, mas também a novela das oito. E antes que vocês perguntem se sou, assim como no caso do futebol, um apreciador de novelas, a resposta é não. Mas sou um interessado nos efeitos da mídia no público.

E muita polêmica girou em torno de Belíssima, de Sílvio de Abreu, por conta do assim dito inusitado fato dos malvados se darem bem no final. Bia Falcão (a personagem, não minha prima Beatriz, que é super do bem), após uma vida de malvadezas, safa-se do Brasil e vai morar feliz em Paris. Alguns expressaram revolta, outros acharam bem-feito diante da mal-planejada estratégia de captura (burra demais pra ser levada a sério, eu diria). No dia seguinte, milhares de espectadores comentavam com conhecidos e amigos o empolgante capítulo final. Comigo não foi diferente.

Um amigo citou uma entrevista que o autor deu à Veja (putz, já tive fontes melhores, mas tudo bem), em que declarava estar impressionado com a perspectiva moral da sociedade brasileira. Dizia que, numa das tantas pesquisas populares que definem os rumos deste gênero narrativo, as pessoas estavam mais interessadas nos personagens que se davam bem a qualquer custo do que nos retos de caráter, os bonzinhos que sempre se fodem. E atribui-se à impunidade escandalosa e escancarada dos últimos tempos este tipo de perspectiva. Bem, eu não digo nem que sim, nem que não. Mas tenho minha própria teoria.

Antes, uma advertência, como de praxe: meus comentários estarão imbuídos de uma certa ideologia estética, digamos, e sempre vão ser de um cara que não é um profundo conhecedor do assunto justamente por não ter paciência de romper a primeira etapa do gosto comum ao estilo da obra. Ou seja, não agüento mais ver novelas, porque na minha opinião, elas decaíram muito, justamente nesse processo de deixar de ser uma narrativa relativamente autônoma para ser totalmente influenciada por pesquisas de opinião baseadas na lei do menor esforço. No mais, todo mundo já sabe que eu sou um chato mesmo. Aqui vai:

Ao contrário de achar simplesmente que essa possível (até provável) opinião popular seja reflexo dos escândalos de impunidade do país, parece-me que o problema ético (sim, existe um problema ético nisto tudo, por mais pós-modernos e relativistas que sejamos) neste caso específico reside mais no fato de que os personagens maus são mais interessantes, justamente por expressarem mais claramente desejos humanos, egoístas e egocêntricos (personagens mais conflituosos e complexos, portanto, como a mente humana é), em contraponto a um bom comportamento socialmente pré-estabelecido, desprovido de sentimentos, questionamentos internos e desejos próprios.

Acho que o problema está justamente na construção dos personagens bonzinhos. Eles terminam sendo meras repetições de valores politicamente corretos, ao invés de uma posição ideológica ou moral que se movimente dentro e a partir de uma certa personalidade, com todos os seus dramas internos postos. É a clássica diferença entre arquétipos e estereótipos: no primeiro caso, o comportamento de um personagem é movido por certas características intrínsecas; no segundo, comportamentos externos são atribuídos ao personagem conferindo-lhe não uma personalidade, mas um mero modo de agir. Seria como dizer que a ação de um arquétipo acontece de dentro pra fora, enquanto a dos estereótipos ocorre de fora pra dentro. Arquétipos são profundos e críveis. Estereótipos não.

Isso me faz lembrar, por exemplo, de Rachel Dawes (vivida por Katie Holmes), a personagem mais chata de Batman Begins (2005), de Chris Nolan – já mencionado neste espaço anteriormente (ver o post Grandes expectativas). A moral engessada, expressão evidente de um sistema inquestionável, cheio de regras, é totalmente oposta ao conceito do herói autônomo, movido por uma psicose de base extremamente humana, que se coloca à margem da lei. Um mínimo sentimento de vingança que Bruce Wayne possa ter pelo assassino de seus pais é duramente repreendido pela sua amiga de infância, que conheceu seus pais, mas parece não ter tido nenhum tipo de envolvimento pessoal forte o suficiente para ao menos colocar a compreensão acima da sua subserviência à moral estabelecida. Wayne, expressão maior de sentimentos nossos, com toda a sua ambigüidade e força, nos fala mais alto. Dawes consegue apenas reforçar o teor de um discurso imposto e acrítico.

O que me faz pensar que talvez precisemos de melhores personagens bonzinhos, menos ingenuamente construídos, ou simplesmente melhor equilibrados. Isto em qualquer instância narrativa. Sílvio de Abreu levanta, sem dúvida, pontos importantes ao estabelecer o contraditório cenário político-cultural do país como possível causa da inversão de valores do espectador. Ao mesmo tempo, é preciso lembrar que qualquer paradigma de comunicação é simbiótico, é influenciado ao mesmo tempo que influencia. Acredito sempre na profundidade, na crítica, na expressão sincera como chave necessária para nossa formação moral e ética. É quando vemos as coisas por vários lados, e procuramos de fato entender qual a verdade que nos rodeia. Seja ela qual for.

11 julho 2006

Cai o pano

Aspectos dramáticos de uma paixão nacional

Já deve parecer que qualquer conversa cujo assunto se relacione ao esporte nacional seja um pouco tripudiar sobre um cadáver. Por isto, este vai ser um post estranhamente curto pra quem está acostumado aos meus pretensiosos artigos. Só pra fechar um ciclo que não tive tempo de fechar antes, enfim.

Se me perguntam se gosto de futebol respondo que sou um apreciador, e não um torcedor. Gosto, portanto, porém tenho expectativas estéticas e dramáticas sobre o esporte; pra mim, trata-se de um espetáculo, e não simplesmente uma mera competição. Entendam, digo espetáculo inclusive no que diz respeito à platéia; seu envolvimento, sua torcida por um dos lados, sua projeção dentro da obra que se constrói diante de seus olhos.

Fácil saber, portanto, que me identifico com todos os brasileiros insatisfeitos com o desempenho do escrete brasileiro. De fato, não consegui mover um músculo no segundo gol contra Gana, ao fim do primeiro tempo das oitavas de final. E a postura passiva diante da inevitável desclassificação diante da França só fez piorar tudo. Mas, enfim, não é um ranço de torcedor que estou pretendendo com este texto – cada um já tem o seu, imagino.

Quando falamos de narrativa, estamos nos referindo à manifestação de um conflito: sua apresentação, seu desenrolar e, na maioria das vezes, seu desfecho. Tudo coerente com o que é estabelecido. Qualquer jornada narrativa diz respeito a um protagonista enfrentando um certo tipo de desafio. E pra isso, aquele protagonista vai ter que lançar mão de toda a sua energia pra suplantar os obstáculos e resolver seu conflito, tornando-se vitorioso. Joseph Campbell colocaria isto em termos míticos, ou seja, parâmetros genéricos de manifestações culturais expressando valores humanos. Qualquer drama passa por aí. E é isso que faz com que a platéia se interesse, se envolva, se emocione. E se decepcione, caso expectativas mínimas não sejam correspondidas: um bom final, ou, pelo menos, uma boa performance do conflito.

No nosso caso, nem uma coisa, nem outra. Deu mais gosto ver Portugal perdendo, porém com toda a raça possível, na semi-final. Deu gosto também o conflito poderoso da outra semi, entre a anfitriã e a finalmente campeã Itália. Resolução no último instante, depois de uma luta incessante de ambas as partes.

O resultado, portanto, parece-me tão importante quanto os processos. Na verdade, deve vir diretamente deles, não? Espero que a moral da história ainda esteja presente daqui a quatro anos. Ou antes. Ou depois.
Creative Commons License
Leitor Ótico by http://leitor-otico.blogspot.com is licensed under a Creative Commons Atribuição-Uso Não-Comercial-Compartilhamento pela mesma Licença 2.5 Brasil License.