23 maio 2006

Realidade, Ficção e Meios-Termos (Modernidade Ultrapassada - 3ª parte)

Costumo dizer que há vantagens em tomar ônibus, demorar mais tempo pra chegar nos lugares – desde que você esteja confortavelmente sentado e em horários pouco movimentados, digamos. Você tem tempo de pensar, contemplar um pouco as coisas externas e internas. E, ultimamente, tem sido o lugar em que tenho tido mais tempo de ler. Pois é, tenho tentado achar os horários mais suaves, sentado mais ou menos no meio do veículo para não enjoar com os solavancos, e me dedicado às leituras necessárias de cada dia. Numa dessas, comecei a ler um artigo de Umberto Eco (sempre ele!) sobre a função da literatura. De onde eu moro até a Universidade Federal é um bom tempo, principalmente próximo à hora do rush, então pude lê-lo e pensar muito, além de fazer algumas anotações.

Curiosamente, os pontos levantados pelo filólogo-semiótico-esteta-escritor italiano tocam um pouco o texto anterior do blog. Isto porque, a um certo ponto, Eco estabelece que uma das funções do texto literário é estabelecer pequenas verdades, encerradas em universos próprios, pré-formatados e acessíveis ao conhecimento público. Mais adiante, contrapondo isso à acessibilidade e interatividade quase absoluta proporcionada pelo ambiente pós-moderno da comunicação virtual – pelo mundo virtual em si, enfim – ele toca em como é possível subverter esses contextos, através de uma composição hipertextual, misturas de uma obra com outra, intervenção numa certa história, e por aí vai. No entanto, ele sempre ressalta que, no fim das contas, a literatura, a obra pura e já imortalizada, termina nos lembrando daquelas verdades literárias, e de certa forma, nos educando que as coisas têm um fim, independente das nossas vontades.

Bem, viagens existencialistas à parte (ando batendo muito nesta tecla ultimamente, desculpa aí, mea culpa), foquei minha leitura mais nessa parte do conceito de realidade e ficção, uma pequena problemática que tenho tido particular atenção depois do contato com alguns filmes recentes, classificados ou apresentados dentro do gênero “documentário”; além de outros filmes de ficção que, além de serem “baseados em fatos reais” (ou, simplesmente, “baseados em fatos”, que me soaria menos redundante), usam imagens de arquivo plenamente integradas à sua narrativa.

Este último caso, aliás, é já bem comum na história do cinema. Mais recentemente, vimos filmes como “Boa Noite Boa Sorte” (Good Night and Good Luck”, 2005), de George Clooney, contrapondo documentos históricos da TV americana com cenas produzidas para o filme. Num exemplo mais pop, “Forrest Gump” (1994), de Robert Zemeckis, ia mais longe e chegava a subverter o próprio contexto dessas imagens originais, fazendo a “ficção interferir na realidade”, digamos assim. Mas isso é algo que já vínhamos tendo contato há algum tempo em programas humorísticos de TV, ou filmes anteriores, enfim.

O que eu acho mais interessante para a discussão é justamente o primeiro caso. A reflexão me veio pouco depois de assistir ao cubano “Suite Habana” (2003), de Fernando Pérez, que retrata um entardecer em Havana sob os pontos-de-vista de vários personagens, aparentemente “reais”, porém evidentemente atuando para a câmera. Não muito tempo depois, tive a oportunidade de ver, seguido de um debate com o próprio diretor Eduardo Coutinho, “O fim e o princípio” (2006). Ambos são “documentários” que estão mais interessados em registrar a performance de não-atores diante das câmeras, dentro do contexto de suas rotinas, mais do que a mera cobertura de um fato dentro de uma certa perspectiva jornalística.

Coutinho afirma, inclusive, que estava, desde o início do processo de filmagem, disposto a se submeter ao que a realidade tinha a lhe dizer, através daqueles não-atores falando de suas vidas diante da câmera. Dentro desta perspectiva, o mais interessante no filme não é o cotidiano de uma comunidade de parentes idosos no interior da Paraíba, mas a originalidade e a teatralidade daqueles personagens. Creio que não se trata de um documentário concebido nos moldes jornalísticos de busca pela verdade, mas por outro lado certamente não se trata de ficção pura. Arrisco, mesmo sem ter estudado o assunto a fundo, dizer que se trata de uma “realidade expressiva” - a realidade interferindo na ficção.

Engraçado que, neste último fim-de-semana, participei de um encontro de estudantes de relações internacionais. À parte que conheci pessoas maravilhosas e me diverti muito com as constantes festas, foi legal ter tido um primeiro contato com um campo acadêmico bastante vasto e interessante. Para a nossa discussão aqui, foi particularmente rico ter presenciado um debate entre um roteirista e um historiador acerca de um filme chamado “O pesadelo de Darwin” (“Darwin’s Nightmare”, 2004), de Hubert Sauper. Um crítico amigo meu o havia definido como um “documentário de terror”, com imagens e personagens bizarros que não deixam a desejar a alguns planos de George Romero. A discussão terminou girando em torno da veracidade de algumas informações contidas no filme, apuradas como generalizadas ou exageradas por repórteres do Le Monde. Porém houve um consenso final em reconhecer o filme como fortemente expressivo ao levantar questões que, independente da total fidedignidade imparcial dos fatos (algo que certamente não existe, já que tudo passa por filtros subjetivos de quem conta a história), são pertinentes ao cenário geopolítico.

Tomando aquele conceito de Umberto Eco levantado no início, o documentário poderia ser definido, em termos literários, como o encerramento de uma daquelas verdades expressivas. O que o distanciaria da ficção enquanto gênero? Bem, poderíamos dizer que não muita coisa, poderíamos jogar no processo da construção do discurso, ou poderíamos, simplesmente, relevar a questão de gênero, aceitando que a convergência de linguagens diversas neste ambiente pós-moderno é definitiva, e que é assim que cada vez mais lemos a realidade.

02 maio 2006

Meios para os fins (Modernidade Ultrapassada - 2ª parte)

Neste fim-de-semana, fui a uma festa intimista com alguns amigos. Entre outras atividades nós nos divertimos escutando a mash-ups, remixagens de bases de músicas relativamente conhecidas com linhas harmônicas de outras músicas relativamente conhecidas também, resultando em misturas ora interessantes, ora bizarras, sempre engraçadas. Uma das bandas mais exploradas para a brincadeira eletrônica eram os Beatles, a maior banda pop de todos os tempos, na opinião deste escritor e de boa parte da população mundial. O dono da festa tinha a preocupação de se desculpar para com alguns fãs confessos, boa parte da população da festa, em mexer com algo que seria quase religioso.

No entanto, os fãs presentes no recinto eram o tipo de fãs um pouco mais comedidos, realmente admiradores da vasta obra dos rapazes de Liverpool, porém não extremistas o suficiente para considerar qualquer tipo de brincadeira uma blasfêmia excomungável, ou para odiarmos incondicionalmente Paul McCartney e Yoko Ono por terem tido a atribuição de responsabilidade pelo fim da banda. Na verdade, um outro amigo chegou a dizer que era grato a eles, justamente por terem colocado fim à banda quando ela tinha mesmo que acabar. Apesar de idolatrar os Beatles desde criancinha e seguir com muito interesse as carreiras solos dos seus ex-membros, não pude deixar de dar razão a este meu amigo. Ele tinha toda a razão: os Beatles acabaram no momento certo. Justamente por terem terminado num momento tão bom, em aspectos artísticos, expressivos e culturais, eles conseguiram se eternizar e ganhar o status de mito.

É claro que esta é uma posição pouco aceita pela maioria daquela boa parte da população mundial que é fã dos Beatles. A máxima Beatles 4 Ever deveria ser aplicada de forma física mesmo, muito mais do que metafísica. Isto porque não fomos treinados, no decorrer da nossa vida, a aceitar e lidar com a idéia de fim. Mesmo conscientes de que é pra onde tudo caminha, de que a realidade é fugaz, de que a morte faz parte da vida, e blá-blá-blá, estamos pouco preparados para isto. É fato. Ou melhor, é quase clichê de tão fato que é.

Nas minhas viagens usuais, liguei estes pensamentos com aquela discussão que estabeleci, alguns textos atrás neste espaço, sobre o aspecto fugidio das relações entre os diversos elementos da cultura pós-moderna, em todos os seus aspectos. Mesmo lidando com fins praticamente instantâneos, o próprio conceito de término parece gerar uma contradição em si, acentuando o conflito de novas realidades sendo formadas freneticamente contra outras já formatadas e consagradas no tempo histórico.

Uma das principais discussões neste ambiente pós-moderno, por exemplo, é a questão do mercado musical. Talvez já tenha mencionado (aqui ou em conversas) que não me parece fazer muito sentido aplicar uma lógica de mercado capitalista mercantil a um ambiente virtual. Por isto, mesmo diante de tantas tentativas de embargo e taxações das grandes gravadoras, as pessoas continuam baixando música free da internet e não se sentem minimamente culpadas por conta disto.

No “fim” das contas, parece mesmo que o próprio sistema capitalista está com dificuldades de lidar com seu fim, ou com o redimensionamento de seus mecanismos de existência, se quisermos ser delicados e não falar tão diretamente no assunto. Não estamos diante de uma simples mudança de mercado – isto é apenas emblemático. Estamos diante de uma revolução paradigmática, em que a lógica social, política e econômica deve mudar, para poder chegar a um pensamento que comporte as inevitáveis mudanças (internas e externas) e o impacto dessas mudanças no nosso cotidiano.

Parece-me uma atitude possível nos colocarmos numa posição de revisão constante de nossas vidas, e uma postura constante de fins e recomeços, para tentar entender a dinâmica de uma sociedade que parece se constituir de forma quase alheia. Encontrar, enfim, um “meio”, um método de lidar com essa infindável quantidade de fins a que estamos expostos. E que nunca vão acabar, exatamente por serem fatos da vida.
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