31 janeiro 2006

O irmão do meio

Aristóteles já postulava há alguns milhares de anos que o número três era retoricamente perfeito. Esta lógica pode ser percebida de forma até simplória em argumentações corriqueiras (ponto, contraponto, conclusão), dialéticas (tese, antítese e síntese) e na própria narrativa (começo, meio e fim). As peças de teatro a partir do Renascimento começaram a se organizar em três atos. No mais, o roteirista e professor Jean-Claude Carrière cita a tradição oriental do “Ho-kai-jun” como uma constante em cada cena de um roteiro, abrangendo para a estrutura completa da história: início, desenvolvimento e brilho. Em narrativa, ou qualquer tipo de argumentação retórica, três nunca é demais.

Fácil entender portanto porque algumas histórias são concebidas como trilogias. Quando uma narrativa se desdobra além de uma peça única, a tendência é que ela ocorra em três partes. Analisando cada episódio em separado, no entanto, normalmente chegamos à conclusão de que há diferenças, notadamente de ordem qualitativa, no que diz respeito a um deles. E, na grande maioria dos casos, essa queda se aplica ao segundo episódio. Isso, o do meio.

Este pensamento sobre a natureza do segundo episódio me veio depois de ter visto “Manderlay”, segunda parte da trilogia “U, S & A”, de Lars Von Trier, iniciada pelo impressionante “Dogville”. E então, lembrei-me imediatamente de outras trilogias mais ou menos recentes, como “Matrix”, de Larry e Andy Wachowski, e “O Senhor dos Anéis”, de Peter Jackson, e, considerando mais a parte moderna da série, “Guerra nas Estrelas”, o eterno brinquedo do George Lucas. Vamos por partes. Ou melhor, por três partes.

Já escrevi sobre “Dogville” neste espaço (ver “A regra da exceção”, caso interesse). Ali, há tanto uma subversão radical não apenas no que diz respeito ao visual evidente (a história transcorrendo sem cenários) como também no mecanismo da linguagem cinematográfica em si, como abordei no meu texto anterior. Mas o que muita gente deixa de evidenciar é a história extremamente forte que está sendo contada daquela forma. Uma crítica a um sistema hegemônico que se expressa através do próprio conteúdo narrativo e se expande para a própria imagem, com ausência de cenários objetivos, apelando para a subjetividade estranha a uma forma de fazer cinema tão hegemônica quanto.

Em “Manderlay”, a impressão geral ao sair da sala foi que as pessoas pensavam ter estado diante de uma obra inferior. Será que Nicole Kidman fez tanta falta assim? Ou foi outra coisa? Bem, à parte que Nicole Kidman faz falta de fato, arriscaria dizer que esta não seria a causa principal. Isto porque, mantendo a estética iniciada na parte anterior, “Manderlay” não traz nenhuma novidade na forma e, por mais que a história esteja bem amarrada e seja bastante intensa e expressiva, o conceito narrativo ainda está em desenvolvimento, e será completo apenas quando a terceira parte, “Wasington”, for lançada.

“Matrix Reloaded” sofre mais ou menos da mesma síndrome: seqüência de um filme que conseguiu deixar boquiabertos espectadores já habituados a efeitos visuais extremamente impressionantes, traz pouca inovação visual e a história parece um pouco vazia à maioria, pelo que pude perceber em algumas conversas. Lembro que na época eu viajei em comparar “Matrix Reloaded” a um solo do saxofonista John Coltrane, em que a proliferação extrema de notas formava um outro tipo de apreciação musical, que pouco perto passava de um sentido melódico mais objetivo. A viagem era na alta ‘densidade demográfica’ dos sons. Da mesma forma, o filme me parece ser um experimento extremo de seqüências de ação e efeitos visuais, apenas com o intuito de dar ritmo à série do que fechar uma história autônoma. Este raciocínio, de fato, me pareceu correto quando “Matrix Revolutions” foi lançado no ano seguinte. Atenção para a cena do arquiteto na segunda parte, colada na cena final da terceira.

Quando vi “Guerra nas Estrelas: Episódio 2 – O Ataque dos Clones”, tive praticamente certeza de que tinha acabado de ver o pior filme da série. Lento no pior sentido, atuações fracas em cenas pífias e tudo mais que pode advir daí. No entanto, depois de ter visto o “Episódio 3 – A Vingança dos Sith”, reconsiderei um pouco, e vi que naquele momento da narrativa (concebida enquanto trilogia) talvez fosse mesmo preciso dispor de momentos menos ‘intensos’, digamos assim – o famoso ponto de respiro da história.

Já na trilogia de “Senhor dos Anéis”, achei que tudo tinha sido uma exceção à regra. A segunda parte, “As Duas Torres”, era, na minha opinião, a melhor das três. Isto porque o primeiro se resumia a apresentar um universo muito complexo, semeando os elementos para várias linhas narrativas e dramas individuais dos numerosos personagens envolvidos; e o terceiro, bem, o terceiro tem problemas narrativos mais sérios, como os vários finais segmentados, ao invés de tentar convergir todas as linhas narrativas para um único (este problema de montagem está comentado em “Ferraris, replicantes e frankensteins”). A história se desenrolava expressiva mesmo na segunda parte, o que é natural se pensarmos na complexidade do universo dramático da série. Não é fácil adaptar mitologias tão conhecidas.

Nas famílias de três filhos, há uma recorrência de casos em que o irmão do meio é o mais perdido. Isto porque ele não é nem a forte representação do orgulho da casa (no caso do mais velho) e nem a frágil criatura a ser protegida (no caso do caçula). Ele termina se colocando num limbo, num conjunto de incertezas e frustrações, carente da atenção devida. Bom, não sei até que ponto isto seria uma regra, mas faz sentido ao pensarmos em sentido narrativo e retórico: primeiro se apresenta o contexto, depois tenta-se desenvolver um conceito para só depois concluir-se com um pouco mais de segurança o que se quer dizer. A parte transitória, o meio do caminho, se isolado, encontra-se meio perdido mesmo.

O que me faz pensar que talvez eu tivesse ter usado apenas três exemplos, ao invés de quatro. Pode ser, portanto, que eu tenha deixado alguma coisa em aberto neste meu raciocínio. Então façamos assim: escolham um dos quatro que vocês achem menos pertinente e elimine toda a sua referência do texto. Talvez a coisa toda faça mais sentido.

03 janeiro 2006

Da limitação e suas possibilidades ilimitadas

(publicado no blog coletivo Oito Nós)

Bom, além deste blog aqui, fui recentemente convidado a fazer parte de um blog coletivo conhecido como Oito Nós (http://oitonos.blogspot.com), cujos temas semanais propostos por membros do grupo são explorados por oito pessoas através de textos. Depois, não sei bem o que acontece, vamos ver como tudo se comporta. Bom, o tema da semana é "Imperfeição". Em princípio, achei ruim. É meu primeiro texto pro grupo e já começamos com isso. Puxa, seria legal falar sobre os méritos ao invés dos deméritos, pra começar, não? Ou sobre Cinema, estética, narrativa, enfim, alguma coisa que domino – se bem que de imperfeição eu acho que entendo, assim como todo mundo. Afinal de contas, ninguém é perfeito mesmo, o que talvez signifique dizer que todo mundo é imperfeito, se adotarmos a assertiva anterior como verdade. Mesmo assim, se a condição humana for a imperfeição, e seja isto que porventura nos diferencie dessa coisa chamada Deus que ninguém viu, mas jura que existe, então ser imperfeito é a condição humana perfeita e por aí vai. Hmm... Talvez seja o caso simplificar, e partir do senso comum, o mesmo que estabelece lá que ninguém é perfeito, ou que todo mundo é imperfeito, enfim. Dessa concepção aí, tinha iniciado a escrever um artigo para a minha coluna ‘Leitor Ótico’ no webzine Vitrolaz (que a esta altura pode ainda existir ou não, mas que de toda forma virou meu primeiro blog: http://leitor-otico.blogspot.com ). Aproveito, então, pra retomar o texto. Lembrando só que sou novo nessa história de blog e que provavelmente este texto vai ser super-extenso – vou tentar encurtar, mas sabem como é, ninguém... Oh, well, vocês sabem.

Bom, acho que se a gente pudesse colocar a história da arte num gráfico que medisse simetria, estrutura e rigor (por muito tempo, características que condicionavam a perfeição na arte), haveria uma curva vertiginosa para cima, um pico ali por volta do Renascimento, depois um período de estabilização até chegarmos ao Neo-Classicismo, em meados do Século XIX. Aí, a partir de alguns pintores românticos como Bacon e do advento do Impressionismo, a coisa começaria a degringolar, a linha indo abaixo vertiginosamente. Primeiro, vão-se os traços limitadores das formas, deixando as pinceladas mais soltas – valendo-se da certeza científica de que enxergamos luz, e não os objetos em si. Logo em seguida, temos, só pra se ter uma idéia, Seurat pintando com pontos, Gauguin e Toulouse-Lautrec com suas distorções e estilizações anatômicas e Van Gogh com toda a sorte de hiperbolização estilística. Daí pra rediscutir-se tudo sobre proporções, matizes, contrastes, temáticas até, foram pequenos pulinhos.

Cito só uma concepção artística proposta por Piet Mondrian pouco mais de meio século depois: a perfeição da obra de arte pictórica está em explorar os extremos das formas (contraste, composição, matiz). Foi aí que ele chegou naquelas composições em vermelho, amarelo e azul, limitadas por linhas pretas dispostas em ângulos retos sobre fundos brancos, que depois foram vulgarizadas em tecidos para vestidos e cortinas. Passado o interesse e a aplicação da novidade, a arte perfeita segundo Mondrian podia rapidamente ser muito chata. De toda forma, se compararmos com o conceito de perfeição artística vigente durante o período do Neo-Classicismo, em que as proporções das formas figurativas deveriam ser rigorosamente respeitadas segundo modelos convencionados, e que as cores deveriam ser suaves, para não chocar o olhar, e que as composições levavam em consideração o equilíbrio entre ângulos retos e linhas diagonais fundando as perspectivas, bem, constataremos que há uma diferença extrema.
Sem dúvida, o alto rigor estético de outrora foi cedendo lugar a formas menos rígidas, porém dotadas de uma alta força expressiva. A “imperfeição”, por assim dizer, termina guiando a intensidade da expressão humana, justamente porque faz cair os padrões que abrandam as emoções, e trazem à luz o novo, o inusitado, o peculiar.

O mesmo processo pode ser presenciado nas outras formas de arte. O Cinema, por exemplo, esta forma de arte que desde o início estava ligada a um apuro técnico ímpar (o domínio de um aparato tecnológico era indispensável), sem falar na aplicação equilibradíssima de outras formas de arte, hoje temos toda a parte de cinema digital revelando um pequeno universo de histórias que se contrapõe à linguagem clássica, estabelecendo parâmetros cada vez mais próprios e variantes. Em relação à música, só pra exemplificar, enquanto escrevo este texto estou escutando a banda britânica Belle & Sebastian, com vocais que estão o tempo todo no limite da afinação aplicados a um range de técnicas instrumentais bastante limitado, se formos pensar no único aspecto do virtuosismo.

Coloca-se, aí, um dilema: os erros, imperfeições, digamos, dessas peças, esses mesmos que as tornam altamente expressivas e são cada vez mais permitidos para deixarem-nas cada vez mais expressivas e por aí vai, bem, até que ponto eles vão chegar? Como diferenciar uma quebra lícita de parâmetros de uma evidente inconsistência de estilo? Enfim, abrangendo esta pergunta para um esquadro um pouco maior: o que se configura, neste atual ambiente de relações e sensações tão efêmeras, como uma imperfeição?

Não queria cair no clichê conclusivo de que tudo é permitido, até porque, estabelecendo isto como verdade, enfrentaríamos problemas éticos em certas instâncias (a Ética, aliás, é um dos paradoxos filosóficos contemporâneos em meio a toda esta concepção exagerada de ‘respeito ao indivíduo’). Como fazer, então? Voltar aos parâmetros anteriores, em que uma formação mínima era requerida para atuar aqui ou ali? Mas como estabelecer estes parâmetros mínimos?

Parece que nos colocamos numa puta encrenca quando falamos sobre imperfeição. Dentre tantas outras contradições, parece que a imperfeição, de cara, nos coloca a necessidade de ter parâmetros próprios. E aí voltamos a discutir gosto, e comparar parâmetros, talvez. Falamos de coisas como deslocamentos de virtuosismo, dissonância conceitual, erros propositais expressivos, enfim. Talvez a tônica seja mesmo a coerência contextual, que por si só é extremamente difícil de estabelecer.

Pra não perder muito a linha, talvez o ideal seja mesmo juntar um monte de amigos num blog coletivo e discutir o assunto. Ou postar comentários depois de ler um texto anacrônico qualquer...

02 janeiro 2006

Grandes Expectativas

Então, antes de entrarmos no assunto em si, vamos recapitular. O primeiro texto que escrevi para esta coluna se chamava “Universos Restritos” e tomava uma certa adaptação de Quadrinhos para Cinema (“A Liga Extraordinária”) como uma linha-guia para analisar aspectos da linguagem cinematográfica contemporânea submetidas totalitariamente a princípios de marketing, e os possíveis equívocos decorrentes dessa submissão acrítica. Curiosamente, este artigo também parte de uma adaptação dos Quadrinhos para o Cinema, esta de um personagem mais do senso comum – falo da mais recente versão cinematográfica do eterno Cavaleiro das Trevas, “Batman Begins”. E, a partir disto, sobre expectativas e como lidamos com elas.

Uma última observação antes de continuar: sim, sou fã do Batman desde criancinha.

Parecia perfeito. Depois de dois fiascos by Joel Schumacher, um filme dirigido por Christopher Nolan, um jovem diretor no máximo brilhante e no mínimo competente (acho “Amnésia” excepcional e “Insônia” mais ou menos, respectivamente), contando com um ator não-estrela no papel principal (sem uma imagem a manter intacta, portanto) e uma série de grandes estrelas nos papéis coadjuvantes (com imagens já intactas o suficiente, portanto), finalmente o bom e velho Batman teria um filme digno de sua longa tradição dramática.

Esta “longa tradição” começou em 1939, com uma história escrita e desenhada por Bob Kane. Um ano antes, havia acontecido a estréia de um outro personagem célebre da DC Comics, o Super-Homem – um arquétipo moderno para o herói poderoso, altruísta e descerebrado, pronto para colocar sua incrível força à disposição do Sistema. Todos conhecem a história desse alienígena que cai na Terra e é acolhido e educado pela generosidade de um casal de camponeses americanos. As centenas de teorias possíveis tanto para a criação quanto para a aceitação do personagem podem ser exaustivamente discutidas, mas eu fico com a versão de algo que vem do alto como dádiva de Deus aos homens pronto para manter a ordem e o progresso. Qualquer semelhança com uma versão pop de Jesus Cristo pode não ser uma coincidência tão mera.

Batman, ao contrário, é fruto de um pressuposto quase oposto, extremamente humano, algo que vem da Terra mesmo: o trauma de um garoto de 8 anos que vê seus pais serem mortos por um criminoso sem rosto bem à sua frente. A primeira história, inclusive, é algo bem mais sombrio, muito mais parecido com os quadrinhos e filmes de referência noir da época do que no glamouroso estilo clean do outro super-herói, o divino lá. E todo o universo desenvolvido a partir de então é repleto de paranóias e psicoses – tanto da parte do vigilante quanto da parte “do mal” (dentro da já fadada visão maniqueísta do mercado quadrinístico americano).

Outro dia, estava conversando com um amigo que o Batman é o único personagem totalmente plausível dos quadrinhos. Trata-se, afinal, de um psicótico: um cara tem um puta trauma na infância, e aí passa vinte anos de sua vida treinando pra se vestir de morcego e bater em criminosos à noite. Tudo dentro de um senso rígido de justiça, porém que não é o senso comum: vigilantes independentes não são admitidos na sociedade – conceito que não funciona numa cidade tão corrupta quanto Gotham. Enfim, uma cidade louca, com vilões loucos e um herói igualmente louco – um universo diversificado, coerente e consistente, e como tal extremamente rico de possibilidades narrativas.

Bom, como vimos, o aspecto psicológico deste universo é fundamental para entendimento e desenvolvimento do personagem – pelo menos enquanto potencial. E aí vem Joel Schumacher dizendo no último filme que era hora do Batman perder essa psicose pra ser mais ‘paizão’ do Robin McDonnel e da BatGirl Silverstone (“Batman & Robin”, 1997). Apesar de ser de índole pacífica e não gostar de conflitos, confesso que fiquei com vontade de bater nele com o mesmo taco de beisebol que Michael Douglas usou num filme anterior seu, “Dia de Fúria” (“Falling Down”, 1993).

Então, enfim, vieram os primeiros rumores de que a próxima adaptação seria entregue ao time que mencionei. E aí, veio uma expectativa imensa, porque admirava o trabalho de todos eles. Porém, novamente, esbarramos em alguns aspectos que penso serem de ordem mercadológica. Trata-se, afinal de contas, de um blockbuster, com retorno comercial exigido e, portanto, toda aquela série de formulinhas para fazer de um filme um sucesso.

Não vou entrar muito no mérito do filme em si para não estragar a expectativa de ninguém por conta da minha frustração. É um filme que merece ser visto, afinal, e com certeza muito mais digno do que os anteriores – o talento da equipe citada faz de fato diferença. De toda forma, vou apenas mencionar que achei que todo o potencial psicológico ficou restrito a se encaixar numa conduta moral meio pastiche, contraditória e hipócrita em si, de acordo com uma visão maniqueísta, assistencialista e até, por que não dizer, intervencionista americana. (Cuidado! Teoria paranóica de conspiração à vista! Releve quem puder!)

Mas, vem a pergunta: se existe tanto essa percepção de que, no fim das contas, estamos diante de um mercado, somente um mercado e nada mais que um mercado, por que continuamos a nutrir tantas expectativas em torno de uma obra que sabemos nascer nesse contexto?

Claro que tem a ver com a história de vida de cada um. No caso deste espectador aqui, um aprendiz de cinéfilo que cresceu fã de um dos personagens mais densos das HQs, é natural esperar muito de qualquer adaptação que seja. Mas sempre apreciei um Cinema intenso, profundo e consistente – na verdade, não apenas um Cinema assim, mas qualquer forma narrativa que me dissesse algo tão forte quanto. E ver todo essa força sendo enfraquecida pela obrigatoriedade de explosões pirotécnicas espetaculares, gags caindo de pára-quedas e cenas românticas praticamente burocráticas é algo que vai além de conhecer ou não um personagem.

Isto me remete a uma outra experiência de adaptação recente, “A Fantástica Fábrica de Chocolate” (“Charlie & the Chocolate Factory”), de Tim Burton, roteiro de John August. Na primeira adaptação do livro de Roald Dahl (que então assinava também o roteiro), “Willy Wonka & the Chocolate Factory” (1971), dirigida por Mel Stuart, tínhamos uma perspectiva quase bizarra de um universo infantil improvável. Conhecendo a perspectiva autoral do próprio Burton, seria natural esperar que um remake do filme fosse dirigido com ele. Novamente, no entanto, houve uma série de concessões para tornar o filme um pouco mais “família”, politicamente correto mesmo. Não acho que isso chegue a prejudicar o trabalho, porém me peguei meio aborrecido às vezes. Pode ser só minha chatice mesmo, mas novamente cheguei perto de mais uma expectativa frustrada.

E quanto àquela pergunta de dois parágrafos atrás, bem, creio não ter a resposta. As expectativas existem, inevitavelmente existem. Não há como escapar delas, em qualquer instância, muito menos quando nos envolvemos um pouco mais pessoalmente nas coisas. Há talvez como pegar mais leve, reconhecer que estas grandes esperanças que nutrimos podem resultar em grandes frustrações ou pequenas boas surpresas, sempre nos sujeitando ao que o destino, ou o acaso, nos propõe.

Na dúvida, sempre tenha uma pastilha de magnésia bisurada à mão – ou qualquer outra forma de alívio imediato.

Algumas verdades

Nestas últimas semanas tive a oportunidade de participar de festivais e, mais importante, ver muitos filmes, dos mais diversos gêneros. Também fui convidado a ministrar uma nova palestra sobre arquétipos e estruturas míticas. Como o tema já foi exaustivamente exposto em diversas ocasiões, resolvi usar de uma abordagem diferente da que vinha usando: escapar um pouco dos manuais de narrativa, na verdade, da própria perspectiva puramente narrativa, com categorizações e aplicações práticas, para falar de uma maneira mais genérica sobre mito e suas personificações. Aí retomei as fontes, Aristóteles na Poética Clássica, a teoria arquetípica de Jung e, é claro, os estudos mitológicos de Campbell.

Engraçado que este trabalho de reorganizar o conhecimento com referências mais antigas bateu com o que vinha sentindo ao ver filmes de ficção e documentários, bem como com algumas coisas que vinha conversando com meus alunos na Universidade, algumas de suas impressões sobre filmes, e tal. Aí, comecei a viajar nessa história que existe muito antes de Pedro perguntar a Cristo “Mestre, o que é a verdade?”.

Partindo da concepção de Aristóteles, em estabelecer a Poesia (à época, qualquer forma de manifestação artística) como “imitação” da vida, é natural pensar que alcançamos um nível de expressão da verdade, dos fatos e atitudes do ser humano, bastante intenso quando nos dispomos a comunicar através de uma forma estética. De fato, o próprio filósofo propõe que a Poesia contém em si mais elevação do que a História (postulada como o relato fiel de acontecimentos), pois aborda “verdades gerais” ao invés de se ater a “fatos particulares”.

Esta linha de pensamento nos leva imediatamente aos estudos de Campbell sobre mitos. O mito seria uma forma narrativa tradicional que expressa valores e posturas éticas de um povo. Originalmente de cunho religioso ou ideológico, o Mito experimentou um paulatino processo de retroalimentação. Ou seja, hoje, temos diversas histórias que se manifestam e se complementam, estando mais ligadas a valores gerais humanos do que a religiões específicas. O mito se alimenta de si mesmo.

E no nosso cotidiano estamos continuamente expostos às velhas estruturas narrativas míticas. Principalmente, abstraindo para o conceito de arquétipos de Jung, uma espécie de personificação do mito em certos aspectos da personalidade humana – um conjunto de atitudes comuns da nossa espécie frente a certas situações. Quantas vezes nos vemos diante de um chefe ou professor que é ora cruel ora paternal? Isso são manifestações, máscaras de um velho mentor sábio revezando com o de um rígido guardião de fronteira. E quanto a relações amorosas, quantas vezes nos colocamos numa posição de dependência da pessoa amada? O que é isto senão à espera de um príncipe encantado, que por pior que seja nossa situação sempre vai surgir do nada para nos salvar?

E se os arquétipos e os mitos estão presentes no cotidiano, que dizer das histórias a que somos expostos? Implícita em qualquer conto que lemos, ou uma reportagem que vemos na TV, ou uma música que escutamos, um filme a que assistimos, está a antiga forma de contar histórias. Algumas vezes, estas histórias são mero relato de fatos particulares; outras, expressam uma verdade geral, comum a todos, por uma forma estética. “Imitando” a vida, como colocaria Aristóteles, esta visão se propõe, sim, a apresentar uma verdade, um ponto-de-vista sincero.

Em contraponto à percepção desta verdade geral, que se percebe subjetivamente, nos vemos diante de um mundo extremamente concreto e materializado. Aí chegamos a algo que parece meio sintomático hoje em dia: a incapacidade de abstração de leitura, diante de um outro conceito retórico que é o da verossimilhança. A história, por mais fantástica e impossível que pareça, deve simplesmente apresentar consistência dramática, coerência com as regras do universo onde se passa, e estas regras, sim, devem estar claras. Tudo para expressar algo, a verdade expressiva do artista, ou simplesmente a verdade expressiva da obra, que é (ou deve ser) até maior que a do artista. O próprio Aristóteles, ainda na sua “Poética” (cap. 19), diz que “quando plausível, o impossível deve se preferir a um possível que não convença”.

Há um exemplo bom disso em filmes recentes de ação: "Matrix" (1999), de Larry & Andy Wachowsky, e "Missão Impossível 2" (Mission: Impossible II, 2000), de John Woo. Na ficção científica dos irmãos americanos, temos impossibilidades evidentes: pessoas dando saltos numa rua inteira, caminhando pelas paredes, movimentando-se numa velocidade extraordinária. Mas tudo é justificado por um sistema de regras bem claro: trata-se de um mundo virtual, no qual algumas mentes são capazes de abstrair e subverter as regras que na verdade apenas simulam àquelas que estamos acostumados. Tudo, portanto, é verossímil. No caso do filme “Super Cruise Me”, o mundo em que a história toma lugar é o nosso, com todas as regras da física plenamente válidas. Aí algumas das manobras fantásticas com motocicletas, os incríveis golpes acrobáticos e tudo mais são, além de impossíveis, implausíveis, pois não há nenhuma justificativa narrativa que embase essa quebra de regras. A trama, portanto, fica inconsistente, deixando de se tornar uma história concisa para se tornar um mero espetáculo de possibilidades estilísticas.

E o público parece ter sido acostumado a uma posição passiva diante disso tudo. Não identifica um universo poético em cada obra, porque isso não lhe é oferecido – um universo, enfim, que seja verdadeiro em si, que expresse suas próprias verdades e convide o público a se envolver. E aí, as pessoas parecem simplesmente confundir ou tratar a verdade artística com a verdade cotidiana, misturando, segundo os conceitos clássicos, a Poesia com a História. Vou usar um outro exemplo pra ver se me explico melhor.

Outro dia, tinha ido assistir ao "Kill Bill – Vol. 1", de Quentin Tarantino, no Teatro do Parque. O público do Parque é bem particular, reage muito à flor-da-pele ao filme. A um certo momento, você parece estar numa partida de hóquei, ou algo do gênero. Engraçado que, quando a Noiva (personagem de Uma Thurman) cortava o membro e fazia da artéria jorrar sangue, o pessoal gritava: “Eita, que mentira!”, ou “É chuveirinho, é?” Isso sem falar quando os personagens quase flutuavam sobre espadas, corrimãos e beiradas de telhados. Mesmo diante de um ambiente evidentemente estiloso, com um universo bem particular usando de uma poética bem clara e específica, as pessoas ainda esperavam que regras da física se aplicassem e que as últimas gotas de sangue não fossem bombeadas pra fora.

Talvez seja mais fácil perceber a problemática da abstração de leitura se tomarmos dois filmes de um mesmo autor, cronologicamente próximos um do outro, e que têm um mesmo universo de conteúdo. Pensei em Michael Moore e seus dois últimos filmes: "Tiros em Colombine" ("Bowling for Colombine", 2002) e "Farenheit 11 de setembro" ("Farenheit 9/11", 2004). De um lado, temos uma estrutura de roteiro extremamente engenhosa, e nos envolvemos mais em nível estético-expressivo mesmo, pois as situações que Moore nos propõe são cômicas, porém cheias de significado, expondo a visão do autor de uma forma bem coerente e intrínseca à própria obra. O discurso anti-armamentista é exposto não como um texto informativo ou ideológico, porém diluído numa série de seqüências criativas e variantes. No segundo filme, temos um conteúdo evidentemente panfletário, sem muita preocupação com variação expressiva, no sentido de criação das seqüências. É o texto que comanda tudo, e as imagens se colocam num lugar meramente ilustrativo. O discurso é coeso, expressando claramente uma posição política, e extremamente bem-construído. Mas Moore não usa das possibilidades estéticas tanto quanto no seu filme anterior. Aristóteles talvez classificasse Colombine como Poesia, e Farenheit como História.

Em termos expressivos, todos os casos (com exceção do Missão Impossível 2, cuja inconsistência já detectamos) são verdadeiros em si, ou seja, estabelecem um universo narrativo para o espectador e se mantêm fiéis a este universo. E esta “verdade expressiva” reflete alguns aspectos das nossas verdades cotidianas, os fatos particulares que ocorrem no nosso dia-a-dia. Justamente por, expondo-se sinceramente, discute uma verdade geral, mítica, que está presente em maior ou menor medida em cada um de nós. Creio que precisamos apenas criar o hábito de estarmos sensíveis a estas verdades, e ver que tipo de verdade geral ela está exprimindo e como essa verdade geral se aplica na nossa verdade cotidiana.

A Poesia encerrando a História, e uma posição crítica e reflexiva sobre ela.

Universos restritos

(Este foi o primeiro artigo que escrevi para o Webzine Vitrolaz, acho que em outubro de 2003. Ele pode ser útil para entender um artigo que devo postar nos próximos dias, chamado "Grandes expectativas". De toda forma, abstraiam os comentários específicos e guardem os atemporais)

Semana passada, passei por três experiências extraordinárias.

A primeira foi encontrar, para minha grata surpresa, na edição da Cosac & Naify para A narrativa de A. Gordon Pym, único romance de Edgar Allan Poe, um prefácio de ninguém menos que Fiodor Dostoievski, dando uma visão sua da obra deste que é um dos maiores escritores norte-americanos de todos os tempos. Entre outras coisas, Dostoievski classificava Poe de “estranho”, pois sua obra não é, pelo menos numa análise mais profunda, autenticamente fantástica. Ele (Poe) apenas admite a possibilidade extrema de eventos sobrenaturais, mas procura justificar tudo dentro de um sistema de regras tão coerente quanto convincente.

A segunda experiência foi assistir uma adaptação cinematográfica para uma obra de Allan Moore, um dos nomes mais importantes no mundo das Histórias em Quadrinhos. O filme, homônimo à obra original, é A Liga Extraordinária, do diretor Stephen Norrington. Talvez vocês já tenham lido algo a respeito, ou mesmo chegado às suas próprias impressões em relação ao filme. Não estou querendo aqui falar mais coisas óbvias a respeito do filme, mas apenas discutir um pouco sobre a realidade de mercado do Cinema.

Pegando carona no comentário de Dostoievski, na obra original de Moore havia também, a exemplo de Poe, um universo coerente e convincente dentro de suas próprias regras. Em todos os seus trabalhos e como qualquer escritor sério, Moore embasa muito bem estas regras, e as deixa bem claras para o leitor. E que trama bem construída, dentro deste universo! Que bela história os produtores tinham nas mãos!

Aliás, quando se trata de adaptação dos quadrinhos, os roteiristas normalmente esbarram neste problema: há um universo muito bem construído por trás de cada obra – uma construção muitas vezes impossível de se repetir ao longo de duas horas (quando muito) de filme. E aí normalmente o que acontece é uma decepção do público fiel de quadrinhos, e uma certa incompreensão do público médio que não conhece o universo da história original. OK, realmente é um complicado conseguir absorver a essência de um universo construído em anos para então desenvolver um único filme, uma obra única e independente.

Mas isto não é desculpa.

Não é desculpa porque o trabalho do cineasta, assim como outros artistas que trabalham com narrativa, é contar uma boa história, seja ela original ou adaptada. E da melhor forma possível. Muitas vezes, o mais difícil é conseguir exatamente esta boa história, esta trama que permite tantas possibilidades, tantos desdobramentos surpreendentes e instigantes para quem assiste. Pois bem, se é uma boa história na sua forma original, por que não pode ser um bom filme?

Felizmente, as fichas têm começado a cair na cabeça dos produtores. Os filmes, mesmo respeitando um universo pré-existente, são obras autônomas, com necessidades próprias. O problema das recentes adaptações reside provavelmente na inconsistência da trama em si, que na maioria das vezes não é culpa do roteirista e nem do diretor (não estou aqui eximindo minha classe da responsabilidade, em todo caso), mas do direcionamento comercial que é dado ao filme.

No caso específico de A Liga Extraordinária, o que houve foi uma série de equívocos – mercadológicos, inclusive. Isto porque, numa história povoada de personagens literários, cuja própria trama depende dos atributos e das histórias de cada um deles, seria preciso pressupor uma mínima familiaridade por parte do público com o universo apresentado. E esta fatia de público que melhor teria condições de consumir o filme está mais interessada numa narrativa consistente do que em cidades indo pelos ares (uma coisa não invalida a outra, a propósito).

Ao invés disto, seguiu-se um espetáculo de clichês do gênero “ação”. Clichês estes, aliás, que já não funcionam tanto quanto antes. O público, mesmo dentro de um contexto de cultura de massa, em que os elementos estéticos são mais ou menos padronizados, não tem mais tanto entusiasmo por fórmulas feitas – o que é fácil notar quando vemos filmes que abusam de clichês fracassarem vertiginosamente nas bilheterias recentes. Pelo menos, aquelas fora dos Estados Unidos.

Inevitável pensar no caso de Matrix. Dentro do gênero “ação”, com coisas explodindo, seqüências de luta memoráveis e até um pouco de romance para humanizar a história, a base de tudo era um conceito complexo, extremamente abstrato, mas que pôde ser bem exposto desde o primeiro episódio. E mesmo com todos os excessos da segunda parte, existe um universo extremamente coerente e convincente, aos moldes de Poe, se quiser pensar assim. Tanto que ainda nos envolvemos e nos deixamos penetrar neste universo, que se apresenta a nós de forma clara e sólida. E os filmes têm sido um sucesso de público, mesmo com toda a sua complexidade.

Isto significa que, no fim das contas, vale mais contar uma história coerente do que tentar adivinhar o que o público quer. Se há algo que pode ser dito a respeito disto, é que o público quer ser surpreendido pelo que está sendo mostrado.

E aí chegamos, finalmente, à minha terceira experiência extraordinária desta semana. No domingo, cheguei do Cinema da Fundação, aqui no Recife, de uma sessão lotadíssima para As bicicletas de Belleville, de Sylvain Chomet. Trata-se de uma animação bem fora do convencional, com uma história que demanda esforço não apenas dos personagens, mas do próprio público. Mesmo assim, ao fim de 80 minutos de exibição, a sala não se conteve, e aplaudiu entusiasticamente o que havia visto – algo raríssimo para uma sessão de Cinema. Foi bonito.

Por que ver os clássicos?

(Esta eu publiquei no Vitrolaz faz uns dois anos, mas me parece válido republicar agora que tenho um blog. Talvez por conta de estar lidando com um brinquedinho novo, não sei. Mas, lembro que na época os comentários feitos ao texto culminaram em listas bem interessantes de filmes clássicos. Então, enfim, aqui vai:)

Janeiro é teoricamente um mês mais tranqüilo, em que se começa a planejar tudo para o ano que chega. Desde projetar as metas de desempenho de uma empresa ou cair no velho clichê de tomar decisões pessoais do tipo “este ano eu paro de fumar”. Geralmente, coisas que raramente são cumpridas, por mais entusiasta que seja a nossa esperança. Mesmo assim, é um exercício válido este de se planejar para ter uma vida melhor, para ser uma pessoa melhor. Sendo assim, também atendendo ao pedido de uma aluna minha, eu gostaria de adicionar à lista de intenções para o novo ano um outro aspecto de crescimento pessoal: ver filmes.

Sempre achei muito difícil estabelecer um elenco de filmes favoritos, de músicas favoritas, de livros favoritos, enfim, de coisas favoritas em geral. A humanidade produziu muitas coisas boas nestes séculos em que tomou consciência de si, e todos nós temos muitas lacunas a serem preenchidas. Mas como o tal pedido pedia para indicar “filmes clássicos e inteligentes”, resolvi fazer uma brincadeira com o título do ensaio de Italo Calvino. Ao invés de “ler”, referindo-se à literatura, usei o “ver”, logicamente com o intuito de propor uma lista de filmes. E queria aproveitar pra convidar vocês a usar o espaço de comentários para sugerir uma lista própria, como forma de trocar idéias e “promover uma maior integração entre as pessoas” e toda esta conversa de ano novo. E além do mais, bom, pode ser divertido, certo?

OK, eu começo. Mas antes, vamos instituir algumas regras para a formação das nossas listas, para que todos possam jogar em iguais condições.

Em primeiro lugar, vamos combinar um número máximo de obras sugeridas, pra esta coluna não se tornar um catálogo de sugestões. Digamos, muito arbitrariamente, vinte (20). Acho um bom número, nem grande, nem pequeno, e dá pra juntar um bom volume de “trabalho” para o nosso tempo eventualmente livre nestes primeiros meses do ano.

Em segundo, vamos discutir um pouco o conceito de “clássico”. Dos verbetes que encontrei no Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa, considerei que dois deles melhor correspondiam ao conceito que quero propor. Segundo eles, “clássico” é “(...) obra ou autor que, por sua originalidade, pureza de expressão e forma irrepreensível, constitui modelo digno de imitação”, ou “que é considerado como modelo do gênero”. Sendo assim, não vamos nos restringir à leitura “clássica” do conceito de “clássico” (perdoem o trocadilho), ou seja, um célebre do passado que obteve destaque histórico – algo “antigo”. De fato, se formos nos ater às classificações das locadoras e canais de TV, chegaremos mais nesta definição do que propriamente neste conceito que estou propondo: qualquer filme “antigo” é um filme “clássico”. Eu considero que, no entanto, podemos usar exemplos mais recentes que consideremos “modelo”, e que, claro, tenham alcançado um nível de destaque que pelo menos faça com que mais de um nós se lembre deles. Aí, vale usar o bom senso.

Em terceiro, e depois disto deixo de suspense e revelo minha lista, vamos determinar que precisamos justificar a presença de cada filme na nossa lista – porque ele nos tocou, porque o consideramos importante na história do cinema, enfim, porque é fundamental vê-lo. Assim, nossa escolha deixa de ser puramente instintiva e passa a ser consciente, o que pode até ajudar a nós mesmos a saber o que nos atrai num filme. Os clássicos, no caso, servem não apenas de influência para as gerações futuras de “fazedores de filmes”, mas também (e sobretudo) para o público formar um repertório de apreciação e leitura e trazer sua exigência em relação a filmes para um nível mais apurado.

Pronto, sem mais delongas, posso finalmente revelar minha lista. Com uma última ressalva, porém: certamente deixarei de fora algumas grandes obras, seja por falta de espaço, puro esquecimento ou uma lacuna cultural minha mesmo. Também procurei sugerir alguns autores, em filmes menos óbvios deles. Mas, como disse antes, a participação de vocês vai fazer com que esta lista de sugestões cresça e vá ficando completa aos poucos. Aqui vai, então, em ordem cronológica:

1- A VIAGEM À LUA (“Le voyage dans la Lune”, 1908), de Georges Méliès. Falando de clássicos influenciando gerações futuras, começo sugerindo a obra mais famosa do homem que é tido como responsável por tornar o cinema uma arte narrativa; neste curta de pouco mais de 10 minutos, Méliès abusa da ficção científica, sem o medo e o pudor que muitos de nós herdamos hoje com a perda da ingenuidade tecnológica.

2- O ENCOURAÇADO POTEMKIN (“Bronienosets Potemkin”, 1925), de Sergei Eisenstein. Não poderia deixar de fora da lista um representante do grupo que estabeleceu princípios deste elemento específico da gramática cinematográfica, a montagem. Cada plano é extremamente expressivo, inserido em meio a seqüências memoráveis, fluidas e plenamente integradas na narrativa.

3- TEMPOS MODERNOS (“Modern times”, 1936), de Charles Chaplin. Embora seja lembrado pelas comédias ingênuas e minimalistas, Chaplin tem seus momentos sérios e comoventes. Este filme apresenta um pouco a condição do social do americano médio na crise pós-quebra da bolsa de Nova York, quase esboçando uma posição política, sem deixar de ser engraçado.

4- CIDADÃO KANE (“Citizen Kane”, 1941), de Orson Welles. Conjugando como poucos as possibilidades técnicas e expressivas da arte cinematográfica, Welles compõe este retrato do homem de sua época – pelo menos em termos de desejo. Outra boa pedida deste mesmo autor é “A marca da maldade” (“Touch of evil”, 1958), que dentre os seus vários atributos tem uma das melhores seqüências de abertura da história.

5- FELICIDADE NÃO SE COMPRA (“It’s a wonderful life”, 1948), de Frank Capra. Alguns poderiam considerar este filme um melodrama ingênuo; eu o vejo mais como um maduro exercício narrativo de um diretor com um número impressionante de filmes realizados. Envolve pela emoção, é verdade, porém de forma inteligente e coesa.

6- JANELA INDISCRETA (”Rear window”, 1954), de Alfred Hitchcock. O Mestre do Suspense não poderia ficar de fora desta lista. Porque ele é muito mais do que simplesmente este título. Sua obra é tão diversa quanto inconfundível, um caso raro de domínio técnico e narrativo. Este filme, particularmente, impressiona por se passar praticamente num único lugar (com o protagonista imóvel numa cadeira devido a uma fratura na perna), e manter a tensão o tempo todo, o que, aliás, é uma marca registrada do autor.

7- QUANDO VOAM AS CEGONHAS (“Letjat zhuravli”, 1957), de Mikhail Kalatozov. Não há muita gente que conheça este diretor, que não apenas surpreende pelo experimentalismo técnico, mas sobretudo por aplicar com muita propriedade os recursos de câmera e montagem a serviço de uma obra extremamente expressiva. Este filme, que ganhou a Palma de Ouro em Cannes (em 1958, se não me engano) é um exemplo evidente disto. Além de ser belíssimo, é claro.

8- A AVENTURA (“L’Avventura”, 1960), de Michelangelo Antonioni. Eis um de meus cineastas favoritos. Sua narrativa é sutil, consistente, sofisticadíssima. O ritmo aparentemente lento causa uma tensão que faz a gente esquecer do tempo. Quando vê, a história acabou, e você é capaz de lembrar de cada detalhe dela. Respire fundo antes de começar, e se esqueça por algumas horas que existe um mundo lá fora. Vale a pena.

9- OITO E MEIO (“8½”, 1963), de Federico Fellini. Quem leu um artigo anterior meu, “Sobre direção de cinema”, já deve ter notado que eu adoro filmes que falam sobre fazer filmes. No caso deste, ressalto apenas que se trata de Fellini, outro dos meus favoritos. Ele constrói o roteiro de um jeito tão desconexo e tão integrado ao mesmo tempo, que o filme vai nos conduzindo por todas as sensações possíveis dentro da cabeça de um diretor em conflito. Tem momentos que a gente se sente invadindo a privacidade do personagem. O fim é apoteótico, não apenas do ponto de vista de forma, mas sobretudo do emotivo mesmo.

10- DR. FANTÁSTICO (“Dr. Strangelove or How I learned to stop worrying and loved the bomb”, 1964), de Stanley Kubrick. Outro que cito um filme apenas para instigar assistir a outros. Kubrick parece deixar a platéia sempre pra trás, sempre perseguindo a narrativa. É uma tensão constante, quase cansativa, mas daquelas que a gente se sente recompensado pelo esforço ao final. Falando especificamente deste filme, foi um dos mais divertidos que eu já vi. Ao mesmo tempo, fala da perspectiva bélica norte-americana e da tensão política mundial de uma maneira surpreendentemente atual.

11- PLAYTIME (“Playtime”, 1967), de Jacques Tati. Quem não viu “Meu Tio” (“Mon Oncle”), deste francês minimalista, assista. Quem já viu, pode pular para este outro filme dele, que mostra uma Paris bem diferente da visão “clássica” (por assim dizer). Pra mim, não é apenas uma obra agradável de ver; parece-me um homem que se reconhece ultrapassado em seu próprio tempo, e percebe que a única coisa que pode ainda acrescentar ao mundo é dar uma visão sua de todo este seu processo. Muito verdadeiro.

12- A NOITE AMERICANA (“La nuit americaine”, 1973), de François Truffaut. Acho que já estou me repetindo, mas se trata de outro filme sobre fazer filmes. Particularmente pra mim, que tenho tido vivências em sets de filmagens já faz algum tempo, morro de rir com as situações propostas. Paralelamente, Truffaut faz uma profissão de fé, com personagens consistentes e bem particulares, e há momentos em que parece sintetizar todas as coisas que podem dar certo ou errado numa produção. E olhe que não são poucas.

13- MOTORISTA DE TÁXI (“Taxi Driver”, 1976), de Martin Scorcese. Acho que foi um dos primeiros filmes de Scorcese a que tive acesso – outro que vale a pena ver várias obras. O mito do herói americano é posto à prova o tempo todo, quando vemos o personagem controverso de Robert de Niro perdendo-se ao mesmo tempo em que se encontra. Tudo caminhando para o que diz Carrière sobre sua perspectiva do final de um filme: tão surpreendente quanto inevitável. Pra quem não conhece bem o diretor, espero que este seja o início de uma grande amizade.

14- NOIVO NEURÓTICO, NOIVA NERVOSA (“Annie Hall”, 1977), de Woody Allen. Que dizer de Woody Allen, então? Especialmente deste filme, que na minha modesta opinião é um dos mais engraçados e expressivos dele. Ele faz de tudo o que se pode fazer num roteiro, indo de uma narrativa fluida e sólida até trechos de metalinguagem evidente. Tudo isto sem forçar a barra, muito pelo contrário, aliás. No mais, diálogos deliciosos, como de costume.

15- APOCALIPSE NOW (Id., 1978), de Francis Ford Coppola. É clichê dizer isto, mas se trata mesmo da obra máxima do Coppola. O início é impressionante, bem representativo da estética dos anos 70 (“clássico”, portanto), já convidando o espectador a se abandonar na história. A platéia segue o ritmo do filme, tomando cada vez mais conhecimento do conflito do protagonista na medida exata em que este vai se aproximando do seu objetivo. Além do mais, a produção é impecável.

16- O SHOW DEVE CONTINUAR (“All that jazz”, 1979), de Bob Fosse. Falar de seu próprio universo pode parecer uma tarefa fácil. Mas poucos conseguiram tornar isto realmente interessante de forma tão criativa, sincera e coerente. Coreógrafo e escritor de vários musicais, Fosse fez esta bela quase-autobiografia, numa estrutura de roteiro original e envolvente. Rob Schneider está maravilhoso e Jessica Lange linda de morrer – vocês logo vão entender o que eu quero dizer.

17- O CAÇADOR DE ANDRÓIDES (“Blade Runner”, 1982), de Ridley Scott. Falando em obras máximas, um clássico da primeira metade dos anos 80. A estrutura de roteiro é toda de filme noir, com o detetive atormentado fazendo intervenções em voice over o tempo todo, enquanto a ação policial vai rolando num universo inusitado e muito bem construído. De longe, o melhor filme de Ridley Scott, mostrando que domina bem a gramática cinematográfica por seu trabalho de vários anos na direção de comerciais.

18- RAN (Id., 1985), de Akira Kurosawa. Citei esta obra já de fim de carreira, por se tratar do caso de um artista oriental apresentando sua visão de uma célebre obra ocidental (Rei Lear, de Shakespeare). Ao mesmo tempo que universal, mostrando emoções humanas de forma escancarada, a forma de contar esta história é bem específica: profunda, tensa, lenta apenas o bastante para nos trazer totalitariamente para dentro da trama. Kurosawa é um dos mestres que consegue fazer com que sua cultura local se abra para uma perspectiva completamente aberta e acessível a todos.

19- DELÍRIOS DE HOLLYWOOD (“Barton Fink”, 1991), de Joel Coen. Eu sou suspeito pra falar deste filme por, basicamente, dois motivos: primeiro, sou roteirista, como o protagonista do filme, e tenho dramas, conflitos e desejos parecidos com os dele; segundo, sou fã meio incondicional dos Irmãos Coen, que estabelecem universos e situações fantásticas de uma forma como se fossem a coisa mais natural do mundo, o que é inquietante. Só quando paramos pra pensar é que percebemos o efeito que os filmes deles têm em nós. Aqui, particularmente, eles nos mostram o quanto escrever pode ser perigoso.

20- MATRIX (“The Matrix”, 1999), de Larry & Andy Wachowski. Gosto de analisar as duas coisas em separado, o primeiro Matrix e a trilogia completa – e gosto das duas, de certa forma. É legal perceber que, numa época em que os efeitos digitais alcançaram o máximo da perfeição técnica, este filme quase alternativo conseguiu renovar o padrão, voltando às bases óticas do cinema. É um exemplo de como o cinema pode ser coletivo, com cada área contribuindo para a criação algo uno, orgânico e expressivo. Um inegável marco na história do cinema.

Só pra terminar, não queria deixar de citar um filme que considero meio hors concours nesta lista: DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL (1964), de Glauber Rocha. Não sou o único a achar este filme um dos mais expressivos de um dos cineastas mais expressivos da história do cinema que, por acaso ou não, é brasileiro.

Muitos diretores e obras igualmente importantes ficaram de fora, mas estabeleci apenas 20, como falei. De toda forma, aguardo as contribuições de vocês para incrementar nossa lista, e desejo um ótimo 2004 (*) a todos. E, é claro, bons filmes!

(*) Adaptando o artigo para os dias atuais, ótimo 2006 e excelentes anos subseqüentes. Olhando à distância, eu acrescentaria à lista o maravilhoso "Crepúsculo dos Deuses" ("Sunset Boulevard", 1950), de Billy Wilder, mas não saberia qual tirar fora. De toda forma, fica o registro, e o aguardo.

Santo Sacrifício

Este é mais um artigo bem pessoal. Quem estiver a fim de verdades mais absolutas, melhor parar por aqui mesmo. Isto porque há certos tipos de temas, eu acredito, expressos por pontos-de-vista específicos, que só podem ser expostos de forma pessoal. É como cantar a própria aldeia para ser universal, ou expressar-se de uma maneira tão sincera que é capaz de fazer com que alguém completamente estranho se identifique e se envolva numa obra sua. E no mais, bem, a coluna é minha, sou eu que estou escrevendo, e dane-se, vai ser assim mesmo.

Bom, há pouco mais de um mês, concluímos as filmagens do meu mais recente projeto cinematográfico, A vida é curta, que conta à história de um cara que precisa ir a uma cidade reconquistar o amor de sua vida, mas só tem quinze minutos pra isso. Estamos num ambiente virtual de fácil acesso à informação, então, quem quiser saber mais sobre o projeto, pode procurar por aí. O pressuposto que se deve saber para este texto é que se trata de um projeto ambicioso, não porque queremos dizer o quanto somos bons ou ruins, mas porque a história pede isso.

Delimitadas as limitações de sempre, partimos para a aventura que é rodar um filme. Tínhamos um grande desafio pela frente: rodar cerca de 183 planos em apenas 5 dias, em 4 locações diferentes. Numa delas, tínhamos que desmontar todo o cenário de manhã cedinho e remontar no período da tarde para poder filmar a noite. Aliás, era a locação mais complicada, com cerca de 50 figurantes, todos vestidos e maquiados com referências da década de 50. Pra quem não está acostumado a dados de produção, posso garantir que são condições de trabalho extremamente difíceis, mesmo para uma equipe experiente. Mas acreditávamos que podíamos dar conta.

A realidade se apresentou bem diferente. Esbarramos nos eternos contratempos comuns a pequenas e grandes produções: os imprevistos. Terminamos tendo que repensar muita coisa, cortar planos, encontrar de improviso outras soluções, enfim, adaptar as idéias às reais condições da realização. Não foi um processo fácil, é possível imaginar. Terminamos deixando de rodar uns 20 planos. Se pararmos pra pensar e colocarmos na média das produções, até que não foi tanto assim. No entanto, dois desses planos eram fundamentais não para satisfazer meu estilo de muitos planos, mas para a história em si. Foi aí que pegou...

Era o último dia de filmagem, uma exterior em meio a um canavial na Zona da Mata Norte do Estado de Pernambuco. Não veio a chuva, que é uma das maiores casualidades de uma filmagem externa, mas o dia estava bem nublado – o que terminou deixando a luz irregular e fazendo com que perdêssemos muitos minutos preciosos. Priorizamos, como sempre, contar a história, e nos concentramos em garantir os diálogos. No entanto, um plano fundamental ainda deveria ser feito: o protagonista correndo para pegar um ônibus. Bem no limite da luz – o sol já prestes a se pôr – preparamos a cena, posicionamos o ônibus no lugar e estava tudo pronto para rodar. Quando ativamos a cena, no entanto, o ônibus, de antigo que era, deu de não pegar. Justo naquela hora, justo no limite, justo numa ladeira, que nem pra empurrar dava. Tentamos ainda por angustiantes 20 minutos garantir o último plano fundamental do filme, mas todos os esforços foram em vão: o veículo só sairia dali rebocado. Eu, desolado, tive que reconhecer que não havia mais nada a fazer.

Meu assistente ainda gravou algumas locuções que poderiam ser úteis, mas eu conhecia bem o roteiro, sabia que tudo aquilo era inútil àquela hora. Isolei-me por alguns instantes, contemplando o fim do pôr-do-sol no meio da estrada do canavial, o vento passando suave pelas palhas secas, produzindo um ruído monódico. E nessas horas que você fica só (horas freqüentemente necessárias), tudo vem à cabeça. Quanto azar tivemos que enfrentar nesta produção, pensei. Azar? Não sei. A impressão que tenho é que o próprio Cinema estava me dando uma lição: não importa toda a preparação técnica que se tem, todo o domínio de ferramentas, todo o planejamento que dê a sensação de controle; no fim das contas, o Cinema, a obra que está sendo feita, é maior que tudo isso. Reconhecer isto é o primeiro passo.

O segundo passo é saber que uma produção não é uma guerra contra a obra, contra a idéia da obra. Tudo deve culminar para que a idéia se materialize da melhor forma. É só que a idéia deve ser encarada com afinco e humildade, um filme está sendo feito, afinal de contas, e você tem um papel nisso tudo. Se não é possível fazer tudo de acordo com o planejado e a idéia pede isso, é hora de refazer os planos. Ver de onde tirar verba para mais uma diária (isto me aconteceu pela primeira vez na vida, aliás), verificar os planos que faltam e planejá-los novamente se for necessário e viável. Mas, sobretudo, ter a certeza de que o filme vai acontecer. É maior que nós, maior do que as virtudes e conquistas da produção, porém também maior do que as dificuldades e contratempos.

O que nos leva ao terceiro passo, que aí depende da uma certa crença: considerar que o Cinema é (ou talvez seja), como qualquer forma de Arte, uma entidade que se cria do espírito humano, que toma uma forma e uma autonomia própria. E aí vira uma espécie de Deus (ou uma analogia à divindade, como preferirem), que pede submissão, devoção e sacrifício, não para ser exaltado, mas para que suas obras sejam feitas e toda a humanidade, profundamente amada por ele, possa partilhar de sua natureza. Quantas vezes eu, enquanto espectador, pude desfrutar dessa natureza? Quantas vezes não senti o impulso de me curvar em reverência diante de uma tela (um altar) antes de deixar uma sala (um templo)? E quantas vezes como realizador não me senti pequeno, indigno e incapaz de despertar isso? Mas nem isso importa.

Durante a oficina de atuação anterior ao filme, eu repetia sempre aos atores: esqueçam o ego e submetam-se à obra – servimos a uma causa maior. Qualquer atributo que nos é confiado num set de filmagem deve ser encarado como uma função, não como um privilégio. O que deve ficar depois que o filme estiver pronto não são as atuações extraordinárias deste ou daquele ator, não é a consistência do roteiro, não é a excelência da fotografia ou o dinamismo e adequação da montagem; nem mesmo o cuidado da direção de arte ou a riqueza criativa dos figurinos; a música não deve chamar tanta atenção, e os efeitos visuais não precisam ser fantásticos; por fim, os planos criados não devem ser maiores do que a história. O que deve ficar é o filme, é o sentimento que uma pessoa completamente estranha vai ver nascendo em si após tê-lo visto. É ali que o processo artístico se completa; é ali que se ligam intimamente autores, obras e espectadores; é ali que se faz mágica.

E dessa mágica, nós somos meros instrumentos.

(publicado originalmente no Webzine Vitrolaz, em fevereiro de 2005)

Cineastas não gostam de água

Não faz muito tempo, numa outra noite de sábado, saí bem cedo de uma festa. Não que não estivesse boa – muito pelo contrário. Era só que, bom, eu tinha outra coisa a fazer. Um amigo meu estava rodando mais um de seus curtas e me convidou a participar da gravação. Era um esquema meio “guerrilheiro”, quatro caras com duas câmeras digitais encarando a noite, chegando nos lugares e filmando as cenas, sem estrutura de produção, autorizações prévias ou planejamentos mais complexos. Puro instinto artístico, e só.

Começamos numa loja de conveniência e fomos bater na praia para rodar a última cena da noite. No filme, o ator deveria entrar na água e dizer seu texto (não vou revelar mais detalhes – o filme será lançado em breve). Estávamos tão envolvidos no trabalho que não pudemos perceber quão estranho eram cinco marmanjos com apetrechos fotográficos numa praia em pleno amanhecer de domingo. Eu mesmo só fui notar isto quando, para exercer minha função, tive que entrar no mar até o joelho – não tive tempo de tirar as botas e nem arregaçar minhas calças.

Bom, pra quem não me conhece, eu não sou exatamente um cara que vai à praia sempre (na verdade, isso deve se resumir a, no máximo, duas ou três vezes por ano, infelizmente). E estar ali com trajes evidentemente inapropriados seria algo no mínimo incômodo. Quando nos vimos obrigados a entrar na água junto com o ator, comentei com meu amigo (igualmente incomodado): “cineastas não gostam de água”. Isto pode ser aplicado a dois workaholics noctívagos como nós, mas na verdade pode ser considerado também uma grande metáfora para a realização cinematográfica.

Segundo uma produtora amiga minha, os americanos elaboraram um ranking de graus de dificuldades de filmagem, e cenas de água estão em segundo lugar, só perdendo para as de selva (a título de curiosidade, são seguidas de perto por seqüências com crianças e bichos, nesta ordem). Realmente, se a gente for pensar bem, é complicado mobilizar uma equipe com atores, câmeras, técnicos, equipamentos de iluminação e maquinaria, som, objetos de cena, etc., para um lugar onde o chão se move, as coisas se molham e puxar uma extensão para fiações elétricas é no mínimo arriscado.

As filmagens de “Tubarão”, de Steven Spielberg, por exemplo, deveriam ter durado 3 meses. Mas foi somente depois de 7 que equipe deu conta de todas as cenas. Um dos planos teve que ser filmado na própria piscina do diretor, pois o produtor não queria gastar grana e neurônios para realiza-la no fundo do mar.

“Waterworld”, de Kevin Reynolds, teve o orçamento mais caro da história do Cinema – o que não foi revertido nem em bilheteria e muito menos em satisfação da crítica. O filme foi todo feito em cenários construídos sobre a água e eu arriscaria um palpite que uma parte significativa do dinheiro foi gasta em tentar adequar as seqüências a esta realidade de produção. Faltou pagar melhor o roteirista, me parece.

Em “Náufrago” (não o longa-metragem de Robert Zemeckis, mas um curta-metragem cearense anterior ao filme americano), de Amílcar Claro, como qualquer filme cuja trama é ambientada em alto-mar, a equipe tinha que esperar horas num barco ancorado até o horizonte ficar completamente limpo de outros barcos ou outros sinais de civilização. Quando finalmente o mar estava sem ninguém, a luz não estava boa, e quando a luz finalmente ficava boa, aparecia um pontinho navegando lá ao longe: mais um barco indesejável.

Há ainda um sem número de curiosidades sobre filmagens feitas na água, mas, enfim, o que eu quero dizer vocês já entenderam: filmar na água é fogo.

Mas o que isso tudo me faz pensar é que, naquela madrugada de domingo, a gente não estava nem aí para a água. Tudo o que interessava era filmar a cena, naquela hora, com aquela luz, com aquele clima, com aquela sensação de estar fazendo uma coisa que vale muito mais do que todo o seu desconforto, do que todos os seus hábitos pouco saudáveis, do que toda a sua história de aversão às coisas do mar; algo que transcende você: um filme.

Quando se tem algo muito importante a dizer, não importam os meios. Muito menos os obstáculos, e as outras coisas da vida que eventualmente nos desviam do nosso caminho. No fim de tudo, ter a chance de se expressar e compartilhar sua essência com outras pessoas é o que realmente importa. As dificuldades só dão um sabor especial ao processo.

Depois de acabamos, saímos exaustos, molhados e imundos de areia. Minhas botas estavam pesadas e encharcadas e minhas meias cheias de areia e minhas calças geladas até a altura das coxas e eu ainda precisava dirigir até em casa. Mas não podia esconder um sorriso que começava bem dentro e se abria invencível do lado de fora.

Agradecimentos a Andrezza de Faria pelas informações e a Kleber Mendonça Filho pelo convite à bela experiência.

Pecando pelo excesso

O ano é 1998. No meio de uma sala escura, um homem ingênuo e cheio de expectativas se entrega totalitariamente ao impressionante conjunto de imagens que passa diante de seus olhos, ocupando quase que completamente a parede à sua frente. Ao seu redor, pessoas parecidas com ele, algumas bem familiares, cercadas por potentes monitores de som, regulados para distribuir informações suaves e sísmicas de forma perfeitamente harmônica por toda a sala, atribuindo-lhes uma tridimensionalidade jamais vista – ou melhor, ouvida.

Bom, pra encurtar a história, o homem ingênuo era eu, a sala escura era um multiplex e o espetáculo artístico-técnico em questão era um certo filme de Steven Spielberg chamado “O resgate do Soldado Ryan”. No meio daquelas explosões – pirotécnicas e dramáticas – eu esqueci toda a parte inicial (com exceção da bandeira americana contra o sol que me deu a impressão de estar vendo-a num negativo fotográfico), a do presente, em que o velho Ryan procura pelo túmulo de seu capitão. E aí me envolvi pra valer na história, chegando perto do êxtase quando o Tom Hanks lançou um último olhar ao Matt Damon e reuniu as últimas forças que lhe restavam para balbuciar um “Deserve it...” (algo como “faça por merecer”). Aí, de repente, um efeito “morphe” transforma o jovem Ryan no velho Ryan, e este diz com todas as letras, levando cerca de 30 segundos, tudo o que eu tinha pensado em apenas um instante, logo após a fala do personagem moribundo.

Isto foi o bastante pra me fazer sair muito puto da sala. Só fui me acalmar quando me convenci de que o filme começava no desembarque da Normandia e terminava logo após aquela frase, com as tropas americanas invadindo o pequeno vilarejo acabando com os últimos resquícios da resistência nazista. Mas depois fui pensar um pouco no assunto. Spielberg tem essa mania, de nos proporcionar um delicioso show cinematográfico, unindo como poucos possibilidades técnicas com fluência narrativa, para depois entregar o conceito – aquele ao qual nós deveríamos chegar – mastigado numa bandeja pra gente. Eca!

Transportando isso para termos mais gerais – e considerando que o diretor de “ET”, “Tubarão” e “Contatos Imediatos do Terceiro Grau” é, sem dúvida, um dos mais geniais diretores americanos –, creio que isto é um reflexo do “American way” de ver as coisas. Pela produção artística e jornalística a que temos acesso, parece mesmo que tudo tem que vir muito bem explicado, pragmaticamente definido, como houvesse uma incapacidade geral de abstrair, de chegar às suas próprias conclusões. O fim deste e de outro filme de destaque de Spielberg, “A lista de Schindler”, explica exatamente o que a platéia já percebeu, ou poderia perceber caso o filme simplesmente acabasse. Redundância, para dizer o mínimo. Mau gosto, para dizer o máximo.

Já me explico. Umberto Eco caracteriza o mau gosto como algum elemento estético que força a atenção do expectador/leitor/apreciador para um aspecto específico da obra. Ele toma um vestido feminino para ilustrar seu ponto-de-vista: uma mulher que aparece com um decote exagerado, numa festa em que todos estão vestidos recatadamente, força atenção para os seus seios, causando constrangimento para uns e deleite para outros.

O público médio talvez não identifique esta causa, mas certamente definiria o vestido como de mau gosto. Não porque o decote em si é feio, mas porque está fora do contexto daquela festa em particular. De outro modo, um outro modelo de vestido, mesmo que ressaltasse as belas formas físicas da mulher, porém sem forçar a atenção para um aspecto específico, permitindo que ela fosse lida em sua totalidade (inclusive revelando sua própria personalidade), aqui estaríamos diante de uma obra definida esteticamente como bela, que chamaria a atenção por sua integridade e por nos permitir uma leitura livre, segundo as características de cada um.

Acho interessante esta percepção do mau gosto, pois tem a ver com a função estética de uma obra de arte aberta, que convida o espectador a fazer parte do processo artístico, dando à leitura da obra uma importância tão grande quanto a sua produção. Eco sugeriu isto por volta de 1964, no seu antológico “Apocalípticos e integrados”. De lá pra cá, muita coisa mudou, inclusive em termos estéticos, padrões de comportamento e tendências de moda. Talvez o exemplo tenha até caducado (muito embora ache que a “dívida histórica” do homem para com a mulher se reflita também nesta exploração do corpo feminino), mas acredito que o princípio possa continuar o mesmo – o excesso de exposição de um elemento ou aspecto específico, mudando-se apenas a contextualização.

E, analisando um contexto narrativo dentro deste princípio, o excesso residiria justamente na redundância, na ênfase que um autor dá a um aspecto de sua própria interpretação, subestimando, mesmo que involuntariamente, o tempo de leitura de cada espectador, sua capacidade crítica de chegar às suas próprias conclusões, mesmo que sejam diversas do que se pensou.

É claro que há obras que se valem do excesso para existir. A alta “densidade demográfica” de notas musicais num solo de John Coltrane me vem à cabeça agora. Só que aí se trata de um outro contexto estabelecido, onde a proliferação de notas faz parte do cenário. No caso de uma obra narrativa, a história pode até ser guiada dentro de uma linha estética, mas o cuidado está em deixar o espectador seguí-la do seu jeito.

Voltando ao nosso exemplo, continuo considerando Spielberg um dos mais brilhantes autores do cinema contemporâneo. Mas ele está inserido num contexto em que a narrativa é subestimada. Dentro destes deslizes de redundância – ninguém é perfeito –, no entanto, ele consegue fazer-nos atingir momentos de puro deleite, o que o coloca dentro de um outro nível de artista, cujo mau gosto se restringe a momentos bem específicos, e não à sua essência. Afinal, aqui não se trata apenas de redundância narrativa, mas também de falta de cuidado estético. Spielberg peca apenas pelos seus excessos eventuais.

Dizem que gosto não se discute – se lamenta. Não sei se dá pra colocar nesta forma, mas se estivermos dispostos a reexaminar nossos preconceitos e absorver uma obra de uma maneira diferente, podemos crescer muito na nossa leitura artística, e aumentar nossas possibilidades de prazer estético.

Mas a obra, é claro, tem que permitir isto.

O imortal e o efêmero

Anteontem fui assistir a uma ótima peça no Teatro Ipanema, no Rio de Janeiro, aproveitando a rara folga do fim-de-Semana-Santa: “Homem-Objeto”, espetáculo de João Falcão a partir da obra de Luís Fernando Veríssimo. Foi uma experiência ótima — os atores estavam maravilhosos, a encenação era complexa e acessível ao mesmo tempo, e o texto era simplesmente extraordinário. Lembro-me particularmente da cena final, em que os atores, diante de uma luz mínima que os deixava praticamente na penumbra, iam vestindo peças de figurino fosforecente, aos poucos dando forma aos seus próprios corpos, construindo a sua existência à medida que construiam o contexto através do texto. Um desses momentos que certamente você guarda por muito tempo, porque lhe é significativo não apenas o que é dito, mas a forma como é dito. Já dissemos, o sabor (a forma) é importante.

Na saída, encontrei alguns amigos, e ficamos por alguns minutos conversando sobre o que tínhamos acabado de ver. Todos tínhamos adorado a peça, e estávamos evidentemente felizes com o que a peça nos tinha proporcionado. A um certo ponto, alguém (e isto provavelmente expressaria o desejo de outra pessoas) comentou algo do tipo: “Cara, isso tem que virar um filme”. Como cineasta, seria natural eu simplesmente achar a idéia boa. Mas minha cabeça terminou se voltando pra uma outra reflexão. Bom, eu tinha acabado de ver um teatro de alta qualidade – não digo nem qualidade técnica, mas expressiva mesmo. Aquela peça me disse muito, em conteúdo, forma e atmosfera. E dentro de elementos bem característicos da linguagem teatral: cenas concebidas tridimensionalmente, apoiadas diretamente na reação do público, desenrolando-se em conjunto com o texto.

E aí, fiquei pensando, será que conseguiríamos alcançar aquele potencial expressivo naquele ponto final da história (daquela cena que mencionei)? Será que a linguagem prioritariamente de imagens do cinema faria jus a uma construção tão integrada com o maravilhoso texto original? Enfim, valeria mesmo a pena? Porque, pôxa, tudo era tão legal dito através do Teatro que considerar outra forma de expressar aquilo quase parecia tentar traduzir uma música do Chico Buarque para o esperanto. Pensei então um pouco no meu amigo: se a experiência tinha sido tão boa no Teatro, por que, então, o impulso imediato ao ver algo bacana é querer vê-lo transformado em Cinema? Caí direto em especulações.

Será que é o simples fato do Cinema lidar com um registro objetivo das imagens? Mas aquelas imagens transcendiam nossa percepção cinematográfica, pois eram expressas em 3 dimensões, complementavam-se com o texto, que tinha todo um significado dito ao vivo. Não sei se poderíamos reduzir isto ao simples registro – até porque isto reduziria a obra (em pelo menos uma dimensão), pois a linguagem teatral tem especificidades diferentes da linguagem cinematográfica. Basta pensar nas experiências de teatro filmado: a obra se torna um meio-termo, algo que não é nem Teatro, nem Cinema, é um limbo de linguagem. Por isto que obras de outras artes (Teatro, Quadrinhos e sobretudo a Literatura) têm que sofrer adaptações quando transformadas em filmes.

Talvez, então, seja porque o Cinema tem um alcance maior, um poder de abrangência que o Teatro não tem, infelizmente ou não. Porque o Teatro deve ser feito ao vivo, em interação direta com o público, que interfere na obra naquele dia, naquele momento. E isto, é claro, limita bastante sua possibilidade de reprodução, tal como bem analisou Walter Benjamin quando o contexto da Cultura de Massa começava a surgir perto da metade do Século XX. E já que tínhamos passado por essa bela experiência, seria natural querer compartilhá-la com o maior número possível de gente. Só que esta outra hipótese rapidamente caiu por terra quando lembrei que o mesmo tema da peça já tinha sofrido uma adaptação para a televisão, cujo potencial de abrangência é ainda maior do que o Cinema, pois é transmitido em condições semelhantes para um grande número de pessoas advindas de públicos dos mais diversos.

O efeito foi bom, evidentemente bem “traduzido” para a linguagem de TV, que é bem diferente da de Cinema, mas não chegou a permitir uma profundidade de leitura que uma experiência como o Teatro e o próprio Cinema proporcionam. Isto porque a TV é evidentemente um veículo da Cultura de Massa, cuja função é entreter ou informar de forma mais superficial, por estar diluída em outras atividades do nosso dia-a-dia em situações que de MacLuhan a Morin já foram examinadas e descritas com muito mais propriedade. Enfim, se não era a TV que faria aquele momento menos efêmero e mais compartilhado com as pessoas, então não faria muito sentido esperar isto do Cinema.

Por que, então, meu amigo desejava tanto ver aquele momento especial no Cinema? Em que isto tornaria aquele momento tão universal, tão transcendental e, principalmente, tão eterno? Minhas opções de especulação estavam acabando, e elas tinham respondido apenas parcialmente à pergunta. E eu não queria dar o braço a torcer e simplesmente perguntar. Então, fiz uma última tentativa.

O Cinema, no decorrer do Século XX, rapidamente se tornou a mais importante forma de arte, talvez em grande parte por seu caráter de entretenimento. De todo modo, como diria Panofksy, foi o Cinema quem tirou a arte dos museus restritos e devolveu às pessoas – na verdade, tornou novamente evidente a necessidade que as pessoas têm da arte. Pois, diferente da TV, ele pressupõe um esforço e uma intenção de consumir estética: a pessoa se arruma, sai de casa, pega um ônibus ou estaciona um carro ou anda até a esquina, paga uma entrada, e então passa pelo menos uma hora e meia do seu dia trancado numa sala escura, normalmente com dezenas de desconhecidos, dependendo do que se dispôs a ver. Há, portanto, um desejo de passar por uma experiência estética, ainda que este desejo nem sempre seja consciente. Mas está lá, exposta a uma tela gigante, à mercê das suas imagens.

Aqui, há um algo a mais que as minhas duas especulações anteriores: esse caráter de ser não por acaso a principal forma de expressão artística, a mais popular forma de arte, ao registrar no tempo e espaço uma expressão autônoma, imortal praticamente, dentro de uma linguagem passível de ser reconhecida como artística. E habituados e expostos que estamos à linguagem cinematográfica, terminamos nos contentando com ela, pois nossas necessidades estéticas estão, senão completamente satisfeitas, parcialmente saciadas. E aí não criamos o costume de ler a arte em outros termos – outras línguas, podemos dizer. Línguas que somos plenamente capazes de compreender e até de dialogar. Risco imediato: achar que somente o Cinema é capaz de nos conduzir por esta experiência plena de tornar esse momento efêmero de prazer estético algo inesquecível, eterno enquanto dure.

Mas a verdade é que somos nós, com nossa história de vida, com estado de espírito e com o nosso próprio domínio da linguagem artística (domínio que é um aprendizado contínuo, e não algo que a gente já nasce sabendo), que tornamos esse momento imortal.

Fórmula e Ferramenta

Creio que já foi mencionado aqui que uma boa idéia não basta. Pelo menos não no que diz respeito à expressão artística. Não basta porque, se esta idéia não se comunica com alguém, ela morre em si mesma, e permanece apenas como uma boa idéia, sem se tornar, efetivamente, algo que fará diferença na realidade, uma obra que toca a vida de alguém e se transmite em toda a sua integridade. A expressão não se encerra no pensamento – ela apenas se inicia ali, e se completa ao ecoar do outro lado, tornando-se comunicação.

No entanto, ao observar a produção artística contemporânea, sobretudo na área audiovisual, freqüentemente me deparo com comentários do tipo “a idéia era ótima”, que sempre são complementados com algum tipo de lamentação pelo que deixou de ser feito, seja por falta de comunicabilidade (“só não entendi bem aquela parte final...”) ou de recursos (“pena que a produção era pobre”). E aí acontece, na minha opinião, a maior tragédia dentro de uma produção estética: o desperdício de uma boa idéia.

E por isto é que a boa idéia deve ser clara, e não apenas, envolvente, interessante, atrativa. Senão aquele pensamento a ser compartilhado com as pessoas pode encontrar uma resistência que não é, em essência, uma falta de receptividade, mas simplesmente uma dificuldade de decodificá-lo na mensagem. Ao mesmo tempo, esta idéia não pode – não pode mesmo, é preciso ressaltar – perder seu impulso expressivo, sua verdade, sua integridade.

No receio de que esta perda ocorra (seria quase uma fobia, eu diria), muitos isolam o processo criativo no que seria uma pura inspiração, um primeiro impulso da criação, “a idéia como ela é”, digamos assim, atirando-se a uma produção visceral e instintiva, sem muitas racionalizações ou ponderações. Pois se tem a impressão de que qualquer técnica aplicada vai macular a idéia, deixando-a suscetível a leis de mercado e a padronizações de percepção e leitura. É uma preocupação plausível, lícita, porém, na minha opinião, ingênua. Porque, dependendo de como são usadas, as técnicas não tiram da obra sua verdade. Ao contrário, ajudam a obra a chegar até a verdade.

Como sempre, gostaria de usar o cinema como guia para avançarmos nesta discussão. E tomando como ponto de partida o roteiro, a idéia de um filme antes de se submeter ao seu complexo processo de produção. A concepção da obra, portanto, e não a obra em si.Quando examinamos a bibliografia disponível sobre roteiro cinematográfico, encontramos dois grandes expoentes que representam linhas bem distintas na forma de conduzir um processo criativo – na verdade, na forma de direcionar este processo em seus respectivos mercados.

Deste lado do ringue, todo o pragmatismo norte-americano, cheio de recursos e ferramentas não necessariamente maléficos mas geralmente restritivos, personalizado em seu mais famoso defensor, autor dos maiores best sellers sobre o assunto, o consultor e professor Syd Field. E no corner oposto, a tentativa de uma antítese a esta perspectiva de mercado, cujo peso está mais no conteúdo artístico procurando não ignorar completamente os aspectos técnicos, eis o roteirista de alguns dos mais célebres filmes e diretor da primeira escola de cinema francesa: Jean-Claude Carrière.

Antes de tocarmos a sineta para o primeiro round, esta é a hora em que entra uma bela garota correndo pela platéia, gritando que tudo não passa de um engano, e que os dois não precisam brigar. Todo este mal-entendido pode ser resolvido com uma boa conversa, desde que as duas partes saibam reconhecer o que há de positivo e de negativo mal dentro de si.

Field acha que a história contida no roteiro deve ser centrada na estrutura narrativa, com um senso de timing bem apurado, no qual eventos significativos são distribuídos com cuidado e precisão no decorrer do filme – inclusive definindo o número da página em que cada evento desses deve acontecer. Para isto, contamos com outros recursos como apoio, como o uso dos arquétipos e estágios de uma jornada mitológica (já previamente estudados e estabelecidos). Se conseguirmos cumprir mais ou menos com fidelidade este modelo proposto, o envolvimento e a atenção da platéia estarão garantidos até o fim do filme. Mas será que estará garantido depois? Já Carrière enfatiza a necessidade de pensar cada cena com profundidade e tensão dramática, procurando retirar significado de cada vírgula do roteiro. O desenvolvimento da história é baseado na “regra” do Jo-Hai-Kiu, em que todo ato, cena, frase deve ser dividida em três tempos fundamentais, que são mais ou menos traduzidos em “preparação, decorrer e brilho” – algo bem mais profundo do que começo, meio e fim. Guiados por esta sabedoria milenar, basta nos mantermos sensíveis na observação da realidade e à nossa própria imaginação que estaremos produzindo algo extremamente expressivo e significativo, sem dúvida. É claro que isto é muito subjetivo e pode não ser alcançado por todos.

Se nos distanciamos um pouco da ideologia por trás destas duas perspectivas – é claro, estamos falando de linhas de criatividade adequadas aos mercados específicos de cada um dos autores – veremos que elas não são necessariamente antagônicas. Os arquétipos e as estruturas míticas, frutos de estudos sérios de gente como Jung e Campbell, e a erudição, sensibilidade e transpiração criativa ressaltadas pelos sábios orientais (e europeus) não são opostos em si, mas possivelmente (provavelmente) complementares. O problema não reside em simplesmente tomar partido de uma das direções, mas em considerar todas estas técnicas disponíveis como fórmulas prontas, ao invés de ferramentas que podem ser utilizadas a serviço da expressão.

A fórmula consiste em algo rígido, em que as variáveis servem apenas para aplicar diferentes valores numa estrutura que permanece imutável. Em termos narrativos: estaremos presenciando não apenas variações das mesmas histórias, mas as mesmas histórias em si. As variáveis podem mudar o ambiente, os personagens, mas tudo segue o mesmo caminho, sem surpresas. Tudo está encaixado na fórmula.

Se, ao invés, tomamos estas mesmas variáveis e a conduzimos por caminhos diferentes, sem a preocupação de mantê-las numa estrutura rígida para obtermos um resultado esperado, então estaremos produzindo algo único. Temos a possibilidade de subverter sua ordem, desviar seu caminho, mudar sua natureza, de acordo com o que a própria obra nos sugere. Não se define o jeito de guiar o pincel numa pintura, mas se deixa o pincel livre, embora este permaneça ali, disponível ao traço do artista. Da mesma forma, as técnicas narrativas podem servir para diagnosticar e prover o que a história precisa para ir adiante. São os instrumentos, as ferramentas de um roteirista, assim como o pincel o é para o artista plástico. Se mantivermos esta perspectiva, estaremos escapando da fórmula, do caminho previsível, e poderemos mergulhar no inesperado, no surpreendente. Sem uma estrutura rígida, ou mesmo a expectativa de um resultado esperado, ficaremos livres para utilizar estas ferramentas sem medo, pondo-as a serviço de nossa necessidade de expressão.

O grande desafio de qualquer artista é encontrar este equilíbrio entre sua verdade intrínseca e sua externalização. E, mesmo que não tenhamos a ambição, a pretensão ou nem mesmo o desejo de sermos grandes (de chegarmos a este extremo), precisamos ter este mínimo equilíbrio como meta, pois é através dele que a arte se completa – é quando ela consegue ser lida na medida justa de sua essência.

01 janeiro 2006

Ferraris, replicantes e frankensteins

Jean-Claude Carrière é um roteirista no sentido mais expressivo. É um cara que parece não ter pretensões de dirigir, só escrever histórias, submetê-las às visões de vários diretores. Já trabalhou com Buñuel, Brook, Forman e muitos outros. Além disto, é um ensaísta, com um estilo bem particular, sem uma construção linear de raciocínio – porém capaz de deixar bem claro sua opinião sobre os assuntos que se propõe a discutir.

Em seu “A linguagem secreta do cinema”, ele coloca uma questão que, no fim, diz respeito à direção. Defendendo que a história deve ser contada de maneira simples, para envolver ao máximo o público com a trama, planos inusitados e cortes vertiginosos deveriam ser evitados, pois chamariam a atenção para si, ao invés de continuar expondo a narrativa de forma clara e fluida. É como um ator entrando com uma peça excessivamente extravagante no meio de uma cena realista de uma peça de Tchekov. Aí, haveria uma quebra de estilo, que aqui nesta coluna certa vez já caracterizamos como mau-gosto.

Até aí, tudo bem: enquanto quebra de estilo, a inserção de planos e seqüências menos “comportadas” num filme que aponta o contrário resultaria, a princípio, num problema de fluência narrativa. No entanto, Carrière termina levantando uma outra questão, que diz respeito a linhas mais abrangentes de caminhos de estilo. Toda a história pode ser contada em planos simples? É só isto que importa? O espectador deve se interessar exclusivamente pela história, e não pela exploração dos limites de sua percepção? Ou será o contrário: dada a nossa maturidade de leitura audiovisual, precisamos de estímulos cada vez mais complexos, extremos e totalitários, ampliando mais e mais a nossa capacidade de apreciação estética, e com ela, a absorção plena de uma narrativa mais expressiva, em aspectos cada vez mais diversos?

Voltei minha atenção, como sempre, para experiências mais ou menos recentes, e cheguei à conclusão (nunca necessariamente correta) de que há um aspecto no Cinema que conduz essa problemática: a montagem. Justamente por ser tão específica da gramática audiovisual, chegando muitas vezes a ser a linguagem cinematográfica em si, a montagem foi um dos aspectos que mais se complexificou à medida que a indústria fílmica foi se desenvolvendo e conquistando o mundo. Basta pensar nos planos fixos da sua gênese (das fotos em movimento dos Lumière ao teatro filmado de Méliès) e no vertiginoso ritmo de montagem dos filmes e videoclips atuais. A diferença de ritmo, estilo e significação é evidente.

Interessante que, quando estava relendo alguns trechos do livro de Carrière, foi justamente na época do Oscar, cada vez mais irritantemente previsível. No entanto, sendo expressão máxima da indústria cultural do Cinema, esta cerimônia pode servir como um prato cheio de análise e tendências de mercado. Dos indicados ao prêmio de melhor montagem, havia três favoritos: “Cold Mountain”, de Anthony Minghella, montado por este senhor magistral e já citado aqui Walter Murch; “Cidade de Deus”, de Fernando Meirelles, editado pelo Daniel Rezende (antítese do Murch); e, por fim, o grande vencedor, “Senhor dos Anéis – o Retorno do Rei”, de Peter Jackson, cuja montagem ficou a cargo da dupla Annie Collins e Jamie Selkirk.

Bem, na minha visão, parece-me que há diferenças fundamentais entre as três peças – diferenças de estilo mesmo, que podem até clarear alguns pontos da nossa discussão até aqui. Para guiar meu raciocínio, resolvi criar metáforas para expressar as três diferentes formas de concepção da montagem. O que me veio à cabeça foram três máquinas (na verdade, três sistemas automatizados) em particular: uma Ferrari, um Replicante e o Frankenstein.

A Ferrari, para aficionados por Fórmula 1 como eu (sim, apesar de não ser muito ligado em carros, resisto bravamente ao Galvão Bueno e não perco uma corrida), consiste numa máquina próxima da perfeição, um organismo quase infalível de funcionamento cuja performance é confiável e extremamente versátil. Neste tipo de máquina, não há um aspecto específico que salta forçando a atenção para si (não tem o motor mais potente, nem o melhor sistema de largada e muito menos a melhor composição dos pneus), mas o equilíbrio é a tônica, fazendo com que tudo funcione sincronicamente de modo a minimizar as falhas e aprimorar o resultado final. Nesta categoria metafórica, encaixa-se “Cold Mountain”, ou melhor, o grande profissional de cinema que é Walter Murch. À parte um certo melodrama por trás da história, o filme não tem uma montagem espetacular, não carrega em si a cara de inovação e ousadia própria da oficial mentalidade semi-adolescente que dita as percepções midiáticas atuais. Ao contrário, a exemplo do que propunha Carrière, nos proporciona belas seqüências, comunicadas na sua plenitude, priorizando justamente a história e seus sentidos dramáticos. Ganha pelo equilíbrio, pela sutileza e sofisticação dos cortes. Domínio técnico não é o bastante, precisa de muita sensibilidade narrativa – coisa que o Sr. Murch tem de sobra.

O Replicante é uma referência ao melhor filme de Ridley Scott (creio que já disse isto nesta coluna), “O Caçador de Andróides” (“Blade Runner”, 1982). No filme, o termo se aplica a andróides ultra-avançados, construídos para serem escravos dos humanos. Para tanto, foram feitos praticamente à sua imagem e semelhança, exceto por apresentarem aptidões físicas bem mais apuradas e teoricamente serem desprovidos de emoção. Apesar de evidentemente destoantes dos humanos normais, sua semelhança básica – tão organicamente integrada com a essência humana de buscar a liberdade, ou o livre arbítrio, que a teologia judaico-cristã define como principal diferença entre os homens e as demais criaturas – os impele a usar de suas habilidades peculiares para tentarem se fundir ao universo que foram colocados à parte. Têm essa característica, portanto, de buscar o essencial da existência através de atributos espetaculares – numa disposição, inclusive, de se extinguir no processo (existe algo mais humano que isto?). Transpondo para a nossa discussão, classifico como “replicantes” os filmes que foram concebidos dentro de uma estética “espetacular”, porém que trazem em si essa clara busca pela essência, numa narrativa concisa e plenamente integrada ao estilo. Vêm à minha mente filmes de Tarantino como “Pulp Fiction” (1996?), Kalatozov com o excelente “Quando voam as cegonhas” (“Letjat zhuravili”, 1957) e, mais recentemente, o “Cidade de Deus”, do Fernando Meirelles. Isto porque a estética assim chamada “publicitária” (planos precisos e expressivos, ritmos de edição variantes, porém tendendo a algo mais dinâmico, e outros aspectos estilísticos impecavelmente planejados e dispostos na tela), está, na minha modesta opinião, plenamente integrada à estrutura narrativa, ajuda a contar a concha de retalhos narrativos que se monta para formar uma história única e consistente. O Daniel Rezende conseguiu apresentar um estilo bem particular que se integrou perfeitamente à função narrativa que a montagem deve desempenhar, muito embora disto muitos pareçam procurar esquecer hoje em dia.

Ao grande vencedor da noite, o óbvio “Senhor dos Anéis – o Retorno do Rei”, coube o posto de Frankenstein da nossa discussão. Isto porque a montagem, evidentemente espetacular, não só pelos efeitos visuais mas também pelo seu próprio estilo (o que é escancarado nas seqüências de batalha), contrasta com o compromisso de contar uma história complexa e conhecida. É justamente no ponto narrativo que peca a montagem da adaptação de Tolkien, o que é expresso numa das piadinhas iniciais de Billy Crystal na própria cerimônia do Oscar: “Nada mau, onze indicações, uma para cada final”. Há, então, uma quebra de estilo do que se propõe o filme e do que se é imposto como estilo visual. A narrativa deixa eventualmente sua coesão para dar lugar a um estilismo exacerbado, muitas vezes não contribuindo para a clareza dramática da história. Assim como filmes deste tipo, a figura do personagem de Mary Shelley é algo apenas próximo de um ser humano, com alguns aspectos funcionais, porém, como um todo, inconstante, cheio de quebras (tanto no aspecto externo quanto no funcionamento do seu próprio organismo).

O engraçado disto tudo é que, por aquela problemática colocada por Carrière no início, filmes “Ferrari” seriam os mais fiéis à linguagem cinematográfica enquanto forma narrativa de arte. No entanto, é preciso levar-se em conta nosso contexto histórico contemporâneo, sobretudo nosso atual ambiente midiático mesmo. Nele, nossos sentidos pedem algo próximo do limite, rápido, expressivo, enfim, espetacular. Neste sentido, há mais espaço para Replicantes e, principalmente, para “Frankensteins”, já que o conteúdo parece já não ter mais tanta importância em relação ao estilo.

Um pena, porque é justamente entre os filmes com montagens “Ferrari”, não-espetaculares, que encontramos maior consistência narrativa. E independente de qualquer outra coisa, nelas está contida a consciência que qualquer profissional de Cinema deve ter: a obra é o que importa Tudo deve estar a serviço dela, e não se deve ressaltar um aspecto em particular. Neste sentido, se uma montagem replicante se mostra necessária ao filme, então que seja feita uma montagem replicante. Senão, então é porque a própria história pede pra você segurar a onda e não destilar estilo sem razão. Melhor ser uma Ferrari comportada do que correr o risco de se tornar um Frankenstein. Afinal, nem sempre é um piloto brilhante quem temos que ajudar a cruzar a reta de chegada. E todo piloto merece ter ao menos essa chance.

Melhor então contar com a melhor máquina possível.

(publicado originalmente no Webzine Vitrolaz)

A regra da exceção

Já faz algum tempo que descobri minhas grandes paixões: cinema, literatura e música. Não necessariamente nesta ordem, mas elas são tão definitivas na minha vida que terminei arrumando um jeito de trabalhar com as três. E estudá-las a fundo. Na verdade, particularmente duas delas, pois a terceira que mencionei, a música, prefiro deixá-la num fascínio mais distanciado, que me permita ser um pouco menos racional com as coisas. Mas as outras duas, bom, estas eu sempre tive uma percepção sensorial que ia junto com técnica – o tipo de experiência pela qual só pessoas que curtem a técnica como forma de expressão podem passar. Não sei se existe muita gente assim, aliás, mas isto têm me proporcionado coisas boas nos últimos tempos. E outras dores de cabeça, preciso admitir.

Só que algumas destas dores de cabeça são daquelas que dói gostoso. Explicando melhor, antes que alguém ache que eu sou um masoquista pervertido, já ouvi um tenista falar uma vez deste prazer com a dor, sobretudo depois de um fim-de-semana vitorioso; parece que nós, atletas intelectuais (Argh! Eu falei “atletas intelectuais”?), podemos sentir a mesma coisa com o nosso músculo principal. Quando não encarada isoladamente, simplesmente como uma sensação ruim, mas como parte de um processo maior em que as dificuldades fazem parte, dão sabor às conquistas, a dor pode ser extremamente positiva, na verdade. Ela pode nos fazer crescer, apontar para a felicidade, ou pelo menos para o aprimoramento das nossas habilidades e sua aplicação para a busca de uma vida mais feliz. A dor pode ser, portanto, o caminho da felicidade. Mas disso falarei melhor depois, num artigo futuro. (Acho que esta é a primeira vez que alguém usa uma referência futura, e não passada).

Este é apenas o primeiro dos nossos paradoxos neste artigo. Mas não o principal. Isto porque queria falar de uma dor de cabeça em particular: “Dogville”, o mais recente trabalho do dinamarquês Lars von Trier. Muito já se falou deste filme, muita controvérsia foi criada em torno dele, muito da temática já se esgotou, até. Só que eu gostaria de falar de um outro aspecto, chamar a atenção para algo que diz respeito mais à técnica – à técnica narrativa, à linguagem e ao estilo expostos na peça. Queria falar, enfim, da imagem que von Trier propõe na sua obra.Antes de tudo, preciso introduzir dois conceitos que venho desenvolvendo em reflexões recentes (que talvez um dia se tornem algo de útil, como uma dissertação de mestrado ou coisa parecida): imagem objetiva e imagem subjetiva.

O ser humano é sobretudo imagético; percebe o mundo principalmente através das imagens. Pegue um indivíduo de nossa espécie que tenha todos os sentidos dentro da curva de normalidade e tire um sentido por vez. Certamente, aquele de que mais sentirá falta será a visão – mal vai se mover. Tire-lhe a visão, e cause qualquer barulho, expila qualquer cheiro, jogue-lhe na mão qualquer tecido, faça-o provar qualquer iguaria. Ele sempre irá remeter a uma imagem daquilo que está experimentando: um vaso caindo na sala, uma pétala de rosa, uma tira de seda vermelha, um pedaço de marzipã. A visão é uma necessidade sensorial constante.

Sem falar em nível estético: das oito artes reconhecidas (aí incluindo as histórias em quadrinhos como a oitava), pelo menos seis são apreciadas prioritariamente no aspecto visual – e as restantes, Música e Literatura, vão igualmente remeter a algum outro tipo de imagem. Aí chegamos nos conceitos de que falei.

De um lado, temos a imagem objetiva, aquilo que é colocado objetivamente diante de nossos olhos para apreciação direta, imediata, para que absorvamos sentido através da sua simples visão. Isto acontece quando apreciamos a maioria das artes, mesmo que estas venham acompanhadas de outros aspectos. De toda forma, é à imagem que atribuímos sentido.

Do outro lado, temos a imagem subjetiva, uma imagem sugerida por um outro nível de informação (sonoro ou textual), que é remetida a nós e que, portanto, tem sua própria construção diretamente dependente de cada expectador. Quando falo ou leio “mão fechada”, por exemplo, cada um vai visualizar uma mão fechada diferente. Da mesma forma, quando escuto uma melodia sem letra, aquilo pode me fazer ter qualquer tipo de lembrança, sensação e imaginação – o que vai ser diferente da pessoa que está junto de mim, mesmo ela tendo uma formação e educação parecida com a minha. O Cinema dispõe de imagens colocadas objetivamente diante de uma câmera. Quando colocadas em seqüência, elas adquirem sentido, ou melhor, atribuem sentido ao filme. Este sentido pode ser subjetivo, mas as imagens não. Estão lá, registradas através de uma máquina incapaz em si de modificá-las subjetivamente, vistas em plano geral, médio ou fechado, do detalhe específico à contextualização aberta. O texto, por sua vez, faz com que a imagem construída a partir dele seja de uma forma diferente na cabeça de cada um.

No caso de “Dogville”, há uma quebra radical nesta lógica: a maior parte das imagens de contextualização do filme são sugeridas: das portas e paredes das casas às mais belas paisagens do vale e das montanhas em torno da minúscula cidade. E isto é um aspecto íntimo do estilo, e da própria expressividade do filme. De tão ínfima, a cidade tem paredes invisíveis, ao mesmo tempo que não se vê através das paredes invisíveis. E há um mundo ao redor dela, mas um mundo apenas imaginado, como se seus habitantes tivessem imposto a si mesmos uma prisão subjetiva, um sistema quase hermético de vida. Enfim, “Dogville” é um desses filmes anormais que surgem a cada dez anos (se é que existe uma periodicidade tão precisa), que mexe com as estruturas do que se conhece como expressão artística, e que faz pensar como a capacidade do ser humano de expressar e refletir as coisas é aparentemente infindável.

Este campo, nós continuamos explorando infinitamente, questionando o tempo todo as características que nós mesmos nos esforçamos tanto para identificar, propor e instituir. O que seria natural nos fazer concluir que, se existe alguma regra rígida dentro da expressão artística é a da exceção, da necessidade de não haver regras – e me parece que mesmo esta regra pode ser quebrada. Seria uma espécie de anarquismo necessário à sobrevivência e à vitalidade da linguagem artística, sem o qual ela cairia inevitavelmente numa mesmice eterna, aborrecendo-nos e fazendo-nos procurar outros prazeres ou outras sensibilizações de sentido, provavelmente pervertendo nossas almas, dando-lhes a falsa perspectiva de que o universo tem fim e que nós chegamos até ele.

Na recente exposição de Pablo Picasso em São Paulo, estão expostas, juntamente com suas obras, algumas passagens de vida e frases que lhe são atribuídas. Particularmente uma delas entrou e ficou na minha cabeça: “A Arte não é a verdade. É uma mentira que nos ajuda a entender a verdade.”Acho que esta preocupação em negar a Arte como verdade (ou expressão dela) tem um pouco a ver com esta necessidade da ausência de regras – tanto na criação quanto, e talvez principalmente, na leitura e apreciação de obras artísticas. É tirar do artista a soberba de estar inventando a roda, mas a consciência de estar apresentando uma visão verdadeira e pessoal da roda, fazendo com que as pessoas a vejam de outra forma e a reflitam de outra forma. Talvez seja esta a chave, não sei.Só sei que cada vez mais me parece que a Arte é este sistema anárquico anti-autônomo, eternamente mutante, cuja razão de existir parece estar em questionar constantemente a própria existência. Porque o próprio pensamento humano é contraditório, mutante e auto-questionador, e falando de uma espécie cuja percepção do mundo está intrinsecamente ligada à percepção da beleza, seria natural estabelecer esta perspectiva como uma possível chave de leitura da realidade. Pode até doer, mas vai doer gostoso.

E no final, seremos vitoriosos...

(publicado originalmente no Webzine Vitrolaz)
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